28.1.09

A Fada e o besouro - Parte VII


- Nem tanto... nem sempre a gente toma as atitudes corretas quando elas são necessárias, não concorda? E quem não promete nada, nem tem nada a cumprir nunca pode apontar, não é? Olho pra tua mão direita... você usa um anel que me parece ser uma aliança de noivado. Mas, se eu nunca lhe perguntar se é ou não uma aliança, eu nunca vou saber... você pode até me contar, mas como eu não perguntei, não quero saber e então tenho toda a liberdade do mundo pra não reter essa informação.
O rapaz assentiu com a cabeça, inclinou-se um pouco para a frente e ela continuou - Na verdade, ele não fez nada. Isso que me irritou. Eu havia acabado de conhecer alguém, tinha ficado completamente apaixonada, só tinha olhos pra minha nova conquista, e acabei deixando-o de lado. Ainda mais que ela morria de ciúmes dele. Na época ele estava com alguns problemas pessoais, e não lutou pela minha presença, não me procurou. Envenenada pelo ciúme que me rodeava, acabei confundindo a distância que ele mantinha com descaso e numa manhã, querendo provar um amor que estava já definhando, queimei a carta dele.
- E como ficou depois?
- Deprimida, óbvio! Sou uma mulher diferente, mas no fundo, sou uma mulher. Impulsiva como todas. Romântica, até. Quando o relacionamento terminou, quis me apegar àquela carta, como uma forma de reatar o que eu havia deixado passar. E ela não estava mais lá. Fiquei meio mal. Mas, para minha felicidade, já era perto do Carnaval novamente e já no sábado ele me aparece de pierrot em minha casa. Com um arranhão no rosto, das unhas de alguma vagabunda, e um hálito de álcool que me fez repensar se a companhia dele valia a pena naquele dia - os dois riram, ele imaginando a cena, ela recordando-a - mas acabei colocando-o pra dentro e contei-lhe o que havia feito. O danado riu e me lembrou que na tal carta não havia uma única linha que prestasse. Eu tinha como ficar brigada com alguém tão deliciosamente irresponsável?
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22.1.09

A Fada e o besouro - Parte VI

- Muito bom... mas um sério risco de pneumonia, não é?
- E alguém liga pra isso quando se tem vinte e poucos anos? Naquele carnaval eu não o vi mais... ficamos um tempo separados, ele foi trabalhar em Recife, Salvador, algo do gênero, e ficou uns bons dois meses por lá. Voltou com umas tranças horrorosas e músicas para todo um disco novo debaixo do braço. Acho que foi o disco dele que eu mais gostei. Ele esteve em minha casa, ms não ficou muito, eu estava morando com alguém, alguém que tinha um ciúme doentio dele. Acho que sentia que havia uma conexão entre nós. Só não sabia se carnal ou apenas intelectual. Ele veio, mostrou as músicas e saiu com dois poemas que eu havia escrito. Os copiou à mão, meteu no bolso da camisa e saiu porta afora rindo feito doido. Um mês depois, sem notícias dele, recebo em casa um quadro que um amigo dele, pintor havia feito, com base nos poemas que eu havia escrito. Ele era hilário, me fazia essas surpresas, como quem dizia, "estou longe, mas continuo por perto". O relacionamento em que eu estava não durou muito. Muito ciúme, muito controle. Não gosto disso... a gente enjoa quando tem essa cobrança. Não gosto, nunca gostei, acabo cansando. Tenho de ter meu espaço, senão eu enlouqueço. Gosto de ficar sozinha às vezes, com minhas canetas, meus papéis, máquina fotográfica e músicas. E pessoas que tentam me tolher eu podo de meus dias.
Ela deixou a janela e andou até uma escrivaninha a um canto. A madeira escura denotava a antigüidade do móvel. Sobre o tampo, um computador portátil. Um pode de cerâmica com canetas e lápis. Uma resma de papel de diversas cores dentro de uma caixa de plástico azul. Ela abriu uma das gavetas e tirou um maço de cartas, amarradas com um laço de cetim azul.
- Eu recebo muitas cartas, sabia? Não apenas emails, mas cartas também. Consegui incutir na cabeça de alguns de meus leitores o prazer de escrever cartas. O prazer de esperar pelas notícias dos outros, a alegria de reconhecer a letra do lado de fora do envelope. A magia das letras desenhadas no papel. Ele me mandou só uma, uma das primeiras, que acabei queimando um tempo atrás.
- Queimou a carta de teu amigo? Ele deve ter aprontado uma daquelas com a senhora, não?

17.1.09

A Fada e o besouro - Parte V



- Será que só ele é que gosta de ser tensionado?
Ela jogou a cabeça para trás e explodiu numa gargalhada - Claro que não, meu jovem amigo, eu também gosto... acho que esse era o grande momento de nossa amizade. Saber o quanto tensionar, o quando deixar solto, o quando pedir e o quanto entregar. É difícil ser amigo, sabe? Ainda mais entre homens e mulheres, em grande parte das vezes, confunde-se amizade e desejo, e são poucas as mulheres e muito menos os homens que sabem separar a hora da amizade da hora do desejo, por sorte, fazemos parte dessa minoria, por isso temos essa conexão há tanto tempo.
Um estrondo sacudiu as vidraças, o rapaz se encolheu de susto com o trovão enquanto ela pareceu não se importar. Levantou-se calmamente e foi até a janela. Abriu-a e recebeu alguns respingos no rosto. Voltou-se para o rapaz, tomou-o pela mão. Ela tinha as palmas macias, mas fortes. Trouxe-o até o peitoril da janela, lá fora, uma tempestade de verão desabava sobre a cidade e uma aragem úmida invadia a sala.
Os dois estava com as mãos apoiadas na madeira do caixilho, recebendo grossas gotas de chuva nos dedos. Ambos de olhos fechados, a brisa molhada acariciando o rosto dos dois. Ela quebrou o silêncio.
- Gente... como é bom, é revitalizante ter a chuva no rosto, não acha? Como é bom... pena que não tenho me molhado tanto quanto gostaria... Me lembro de um carnaval. Eu o encontrei por acaso em um bloco, e foi nos vermos e um temporal desabou, eu usava um capuz vermelho, ele estava com um panamá todo amassado, típico dele. Nos escondemos entre dois sobrados, para nos proteger das pessoas, e não da chuva. Esperamos o bloco se distanciar e voltamos para a rua, molhados, inebriados pela experiência de termos deixado os céus nos lavarem de tudo, deixando-nos limpos e puros para o que quiséssemos dali para frente. Ficamos os dois dançando, pulando pelos paralelepípedos molhados, tendo ao fundo as marchinhas do bloco que ia lá na frente... nos molhamos muito aquele dia... ele acabou comprando uma toalha para que eu voltasse para casa, de tão encharcada de água e felicidade que eu estava.
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15.1.09

A Fada e o besouro - Parte IV



O rapaz sorriu - Eu sei... tenho muito desses tipos de problema... mas... voltando... isso faz tempo... como foi a repercussão do livro? Não na imprensa ou no público, isso eu posso consultar em arquivos... quero saber entre vocês dois... que eu me lembre a senhora não estava sozinha na época.
- Realmente... não estava, e a pessoa com quem eu estava o via apenas como um amigo meu, o que, realmente era na época. Quando ele um dia apareceu em meu apartamento com uma garrafa de vinho, um buquê de rosas e um exemplar do meu livro ela tomou um susto, mas bebeu tanto que dormiu no sofá e nos deixou sozinhos, comemorando meu feito...
- Nossa... um triângulo! Uma revelação e tanto!
- Sim, isso eu te peço para não incluir, sugira, apenas... até porque essas figuras geométricas aparecem sempre em nossas vídas... temos vidas cíclicas, círculos viciosos e virtuosos, triângulos amorosos, somos quadrados ou obtusos, dependendo de quem nos olha... quem nunca se envolveu num triângulo? Quem nunca andou em círculos na vida? Alguns de nós têm vidas paralelas, que não se encontram nem no infinito. Vivemos buscando pontos de fuga pra nossas vidinhas sem perspectivas - ela deu uma gargalhada e completou - menino... havia séculos que eu não lembrava tanto de uma certa professora de matemática... ela acabou entrando na minha vida também... e foi uma loucura... porque eles começaram um caso e se encontravam em minha casa, por sorte durou pouco, antes que eu começasse a sentir ciúmes - ela notou uma das sombrancelhas dele se erguendo, e sorrindo, continuou - sim, eu também sou capaz de sentir ciúmes, também sou egoísta... todos somos... alguns só disfarçam melhor. Eu me canso das pessoas... talvez nunca tenha me cansado dele porque ele nunca foi muito próximo, nunca se deixou aproximar muito, ele sempre pairou em minha vida, mas como não ocupava um espaço definido, eu nunca me cansei dele... era uma espécie de bóia, sabe... que estava sempre por perto, mas nunca me estorvava de tê-la de ficar carregando comigo. Acho que foi isso sim... mas dessa vez eu quase senti ciúmes... como eu podia dividir aquela companhia com outra? No começo achei o máximo ser alcoviteira, mas depois a sementinha do ciúme começou a crescer no meu peito... Ainda mais tão próxima de mim... não nego que olhei pelo buraco da fechadura uma ou duas vezes, querendo saber o que eles conversavam e o que faziam... contei isso a ele depois, ele morreu de rir... disse que sabia que eu fazia isso... mas não sabia nada... falou apenas para mexer comigo. Mas acabou, eles se cansaram um do outro e voltamos à nossa amizade só nossa. Mas a experiência foi boa, sabe? Me rendeu frutos.
- Seu segundo livro?
- Não, o terceiro, uma novela. "A hora em que seremos ninguém". O caso deles dois me acendeu uma centelha que me fez escrever, usei as características físicas dela na personagem principal, e o temperamento dele nela. Ele deu muita risada quando leu os originais e perguntou se era uma vingancinha o que fiz com a personagem no final... pois, se fosse, ele ia ficar com medo de mim, um dia. Ele ainda disse que ligaria pra ela só pra avisá-la que eu tinha ficado com raivinha. Mas sei que ele nunca faria isso, ele gostava mesmo era de implicar comigo.
- Só implicar?
- Claro que não... mas eu também implicava muito com ele, o provocava... e isso o estimulava, sempre estimulou. Ele gosta de ser tensionado...

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13.1.09

A Fada e o besouro - Parte III


A resposta veio num sorriso cúmplice e ele, enfim, voltou a xícara vazia para a bandeja sobre a mesa. Então resolveu fazer uma pergunta.
- Estou vendo que esse rapaz foi bem importante... será que posso supor mais coisas?
- Ahh, vocês jovens... supõem tanto!!! Supõem quando devem ter certeza, têm certeza de suposições... mas estou de bom humor e simpatizei com você, tens olhos que me trazem boas lembranças. Digamos que ele foi um dos primeiros. Até porque, dificilmente há um primeiro, uno, único! Existem primeiros... imagine o homem que pisou na Lua... ele foi o primeiro, único, o que deixou lá o pezinho dentro da bota branca marcado nas areias lunares. Mas será que ele aproveitou ser o primeiro? Talvez o segundo, o terceito astronauta é que tenha conseguido fazer a Lua feliz, que a tenha explorado como ela gostaria que fosse. Ou quando leu um livro, teve a primeira vez. Mas só na quarta que você consegue entrar na cabeça do autor e... zás! Capturar a idéia que ele queria passar, então essa é a primeira vez que conta, mas você já esteve com o livro nas mãos e nos olhos outras vezes. Ele já era teu conhecido, amigo, parceiro... e não foi uma vez... na nossa vida, não conta o primeiro, o desbravador, o que fincou a bandeira no território hostil, mas sim o que, em definitivo, toma posse da terra e a lega a seus descendentes.
Ela deixou uma pausa, para que o rapaz assimilasse o que ela dissera - Ele foi sim, um dos primeiros, assim como você é um dos primeiros repórteres a quem conto essa história, se é o uno, o único, o desbravador, isso eu não sei... também não sei se será o que tomará posse definitiva do que estou contando... nem sei se ao tentar ser, seus editores ranzinzas e bitolados deixarão que o mundo veja uma história que não tenha nas primeiras linhas o "quê, quando, onde e porquê" que tanto irritam os que sabem ler de verdade.

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12.1.09

A Fada e o Besouro - Parte II



O rapaz acomodou-se melhor na cadeira, apoiando os braços sobre a bolsa, dando a entender que era todo ouvidos. A senhora pigarreou e começou.
- Faz algum tempo, aliás, faz muito tempo, eu era jovem e bonita, e tinha belas pernas. Eu o conheci numa gafieira, ele estava bêbado, e se não dançava mal, também não era bom dançarino. Sempre me irritei de dançar com homens que não sabiam conduzir direito, achei que não fosse gostar de dançar com ele, mas, por incrível que pareça, mesmo ele não sendo bom, o lance fluía e deslizávamos pelo salão. Sei que no final, dei o número de meu telefone para ele, coisa que eu nunca havia feito com homem nenhum. Ele me ligou algumas vezes e acabamos amigos. No início ele tentou se aproximar demais, mas sempre me respeitou e foi amigo. Aí acabamos amigos mesmo. Um dia estávamos conversando e ele me entregou um livro dele, os originais, para que eu lesse. Ele era músico, professor, fazia um monte de coisas ao mesmo tempo e eu achava graça no jeito bagunçado dele. Gostei do que ele tinha escrito e ele disse que aqueles originais eram meus, para que eu olhasse praquele calhamaço e me sentisse tentada a produzir um igual.
Uma outra senhorinha entrou na sala com uma bandeja, depôs sobre a mesa um bule, duas xícaras e um pratinho com biscoitos.
- Café? Sei que jornalistas são viciados em café e cigarros. Eu mesmo já trabalhei em um jornal por uns tempos, um jornal que já acabou, mas que chegou a ser conhecido aqui. Fui revisora lá, cheguei até a publicar umas crônicas. Isso me abriu algumas portas. Mas voltando a esse amigo... íamos nos correspondendo, nos falando, quando tínhamos brechas, nos encontrávamos e contávamos de nossos planos. Um dia mandei a ele o início de um texto, ele adorou, me disse que era por ali mesmo, que eu tinha de continuar. Resolvi que escrever seria um objetivo... alguns meses depois eu levei um rascunho para ele ler. O louco pegou meus originais e mandou para um amigo, que trabalhava numa editora e eu fui incluída numa coletânea de novas autoras. Depois de um tempo, começaram a chegar convites para novas coletâneas, e um dia, escrevi um livro inteiro. Lembro de ter terminado de parir o livro, foi essa a expressão que ele usou, ao lado dele, ganhando massagem nos ombros enquanto terminava de escrever. Engraçado como foi importante tê-lo ali. Nessa época algumas pessoas já me usavam como exemplo, por conta de minhas posições, você sabe, não é? Sempre fui muito franca quanto ao que eu sentia, quanto ao que eu gostava, mas essa minha amizade com ele era meio proibida, era um jogo nosso, costumávamos falar que éramos proibidos. Ele começou a fazer sucesso, eu também, cada um em sua área, muitos poderiam ver algo mais em nossa amizade - ela deu uma pausa, tomou um gole de café e continuou - até chegamos a pensar em nos deixarem ver juntos, fingindo mais intimidade até do que realmente tínhamos, só pra ver se alguém comentava, mas achamos melhor não, era mais divertido ficarmos escondidos, mais gostoso... - nova pausa e os olhos dela brilharam maliciosos, fitando o rapaz, que agora estava ligeiramente inclinado para frente, a xícara vazia entre as mãos - por acaso você já deve ter feito algo escondido, nem que seja pegar biscoitos escondidos de sua mãe... são mais gostosos, mesmo sabendo que se você pedir, ela os dará a você, não é?
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5.1.09

A Fada e o besouro - Parte I

O repórter apertou a campainha e esperou a porta abrir. Mal tinha começado a reparar nos entalhes da porta pintada de branco quando uma senhora a abriu, cumprimentou-o com um aceno de cabeça e fez sinal para que ele entrasse. O rapaz seguiu a mulher por um corredor coalhado de fotos e recortes emoldurados de jornais e revistas. Chegaram a uma sala de pé-direito alto, com um piano a um canto. Cadeiras de espaldar alto estavam dispostas ao redor de uma mesa baixa. Em uma das extremidades, uma cadeira de balanço, de palhinha, onde a senhora se sentou, cruzando as mãos sobre o colo, enquanto indicava com a cabeça uma cadeira para o rapaz acomodar-se.
O jovem, normalmente muito falante, estava num silêncio respeitoso por aquela senhora de cabelos brancos e olhos instigantes. Estava tirando um gravador da bolsa quando ela falou pela primeira vez. A voz era suave e surpreendentemente jovem.
- Não precisa gravar não. Na minha idade já passei do tempo de contestar o que escrevem sobre mim. Não precisa nem anotar, escreva apenas o que achar que vale a pena. Ou o que sua cabeça lembrar, ou como ela lembrar, tanto faz.
Ele voltou o gravador para a bolsa, fechou-a e cruzou as pernas, os olhos fixos nos da mulher à sua frente.
- Então... acho que você quer saber como é que eu me sinto como uma escritora que teve um de seus obscuros livros relacionados como relevante por uma revista inglesa sobre literatura, não é, meu amiguinho? Pois isso não é o mais importante, sabia... um telefonema que recebi ontem foi mais importante que essa escolha. Sabe porque? Porque o telefonema veio de uma pessoa que me incentivou a escrever. A escrever esse livro, para ser mais exata. Quer saber dessa história? Ou acha isso apenas devaneios de uma velha senhora?

3.1.09

Havana



Abriu a caixa de madeira envernizada e tirou um cortador de charutos de dentro. Ficou brincando com o objeto de aço inox nas mãos alguns instantes. Deu uma olhada mais demorada dentro da caixa. Toda uma vida estava resumida ali. Além do cortador, duas fotos polaroid esmaecidas com o tempo, um anel de platina com uma pedra azul, um passaporte vencido e um tubo brilhante. Após meses teve curiosidade de ver o que havia ali dentro. Desenroscou a tampa e descobriu um charuto. Um havana legítimo. Nos dois anos em que eles passaram juntos ela havia aprendido algumas coisas sobre aqueles cilindros de odor inconfundível que ele adorava. Passou o charuto pelo nariz, aspirando sua fragrância. Era bom. E logo ela que sempre implicara com o hábito dele de fumar um "puro", como ele os chamava, aos sábados, sentado na varanda da casa, olhando as pessoas passarem na rua. Lembrou-se da figura dele. Engraçado em suas calças de linho bege e sandálias de couro, as pernas cruzadas sobre um banquinho e as baforadas que pareciam guardá-lo numa nuvem de neblina. No início achava estranho ele ficar ali, fumando, sem dizer uma única palavra, num mundo particular em que ela sempre fora rechaçada. Em atitudes grosseiras que não condiziam com o companheiro carinhoso dos outros momentos.
Quando deu por si estava sentada na mesma cadeira que ele, dando uma tragada no charuto, após ter repetido mecanicamente todos os passos que o vira fazer durante aqueles anos. Deu um sorrisinho cúmplice para si mesmo quando cruzou as pernas sobre o banquinho e a fumaça azulada do charuto envolveu-a.
Realmente, aquilo era a melhor forma de preservar a memória de quem nunca mais apreciaria um daqueles 'puros'.

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2.1.09

Bonita?



"Bonita? Ela era linda, isso sim!
"Bateu com o copo na mesa, fazendo algumas gotas de cachaça irem parar no balcão de madeira ensebada.
Passou as costas da mão na boca e, chegando-se um pouco para trás, cuspiu na calçada. De volta ao balcão e à platéia, repetiu, dessa vez com mais ênfase.
"Bonita? Ela era linda, isso sim!"
Um escurinho imprensado entre o freezer e a parede virou um copo de cerveja e, de bigodes brancos de espuma, arriscou:
"Mas... se ela era tão bonita, porque cê num tá com ela mais?"
Mal terminou a frase e um par de olhos o fuzilou. As narinas tremendo previam um ataque. Sob o peso daquele olhar injetado de sangue, o pretinho encolheu-se mais ainda, enquanto os outros bêbados se afastavam, dando espaço, temendo o pior.
Que não veio.

O homem que falava segurou novamente o copo de cachaça, apertando como se quisesse esmagá-lo. O olhar, de furioso, foi-se tomando de melancolia, até uma lágrima se dependurar do olho e rolar pelo rosto gretado de sol. Virou a cachaça, jogou uma moeda no balcão e virou-se para partir, ainda fitando o interlocutor.

"Porque ela era linda, seu imbecil, e eu sou um merda que nem você"


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