30.8.10

Conversa de bêbado

Ele era o bêbado. Cidades pequenas costumam ter seus estereótipos. A cidade pequena é quase um tarô. Você encontra o bêbado, o louco, o rei e por aí vai. Ele era o bêbado. Sempre sentado na mesma mesa no bar da rodoviária, antiga estação de trem. Parecia tão parte da paisagem quanto os azulejos encardidos do prédio. À sua frente, ou um copo de cachaça, se a grana era curta, ou uma cerveja, para a semana em que recebia o benefício.

Era uma quarta-feira, três da tarde. Novembro. Um dia quente e de ar parado. Até as moscas pareciam sem vontade de voar. O dono do bar tirava um cochilo atrás do balcão, o único freguês era o bêbado. Bermuda, chinelos, as pernas brancas e peludas esticadas na calçada. A camisa listrada de algodão estava toda desabotoada, deixando a barriga que estufava uma camiseta branca à mostra. A barba branca estava manchada de nicotina, assim como os dedos da mão esquerda. O copo de cachaça sobre a mesa estava pela metade e ele estava com preguiça de mais um gole. Os olhos embaciados tentavam ver algo além das manchas de óleo no calçamento, onde um cachorro dormia sobre um punhado de areia.

Um ronco cortou o silêncio da tarde e um ônibus virou a esquina. O cachorro levantou-se e veio deitar sob a cadeira do bêbado. O veículo freou bem em cima da areia onde o bicho dormia, levantando uma nuvem de poeira. O velho levou a mão ao copo, protegendo-o da poeira. O ônibus exalava um bafo quente, que aumentava o incômodo do calor da tarde. A porta abriu-se num rangido e um homem saltou. Jovem, rosto comum. Paletó de tecido claro, chapéu de lebre e uma pequena mala de couro marrom na mão. O motorista fechou a porta e arrancou novamente, produzindo nova nuvem de areia, além de uma carga de fumaça negra do escapamento.

O recém-chegado parou ao lado do bêbado, olhou para os lados. O dono do bar continuava sua soneca, um jornal cobrindo o rosto. O estranho colocou a mala no chão e pigarreou antes de falar.

- Se eu pedir uma cerveja, cê divide comigo?

O homem sentado girou um pouco o pescoço e olhou para o forasteiro. Os olhos continuavam embaciados e meio vazios, mas ele deu um sorriso de dentes amarelados.

- Só não vou é ter como retribuir a gentileza, meu amigo, só tenho o da cachacinha, e contadinho as moedas.

- Ligo não, quero companhia só, não esquento de divisão, ainda mais num lugar que não vou esquentar pouso. A cachaça daqui é boa?

- Entra aí, acorda esse preguiçoso e pede uma das que ele guarda no fundo da geladeira. e se quiser pinga, pede uma "Jão Bobo", a do barril que ele vende aí é intragável. Só mesmo pra quem não conhece mesmo, e o distinto tem cara que 'apreceia' uma de qualidade.

O moço riu e entrou no bar. Acordou o dorminhoco e voltou com duas garrafas e três copos. Dividiu a cerveja e completou o copo do velho, além de servir uma boa dose da "Jão Bobo" para si mesmo.

- Comprou a garrafa?

- E ainda pedi pra separar mais uma, caso eu goste, levo uma de lembrança daqui.

O velho deu uma gargalhada. - E até parece que aqui tem algo pra se levar de lembrança, cidadezinha perdida no meio do mundo?

O estranho deu um sorriso de lado e piscou um olho - Todo lugar tem algo pra se levar de lembrança, meu amigo, até nos mais remotos rincões do mundo, quem tem um bom olho descobre algo que valha a pena levar consigo.

- Se você diz, que parece ser moço estudado, eu não tenho nada a contestar, mas esses olhos velhos já viram muita coisa, ainda mais aqui, e não vi nada aqui que possa interessar a quem não seja daqui, e olhe lá!

Após um gole de cerveja, o moço estalou a língua, e sem olhar para os lados continuou - Eu não o desminto, meu caro. O senhor está coberto de razão, mas toda regra tem a exceção que a confirme, não é? - O velho resmungou em consentimento e ele prosseguiu - O amigo é inteligente, mais do que parece, tem muita gente aqui que acha que a cana te deixa menos esperto que elas, não é? Eu sei muito bem como é isso, mas é aí que eles erram, mas é bom. Quando menos esperam, quem não chama atenção é que faz a diferença, não acha?

O velho riu e cutucou o outro, rindo - Hehehe, isso mesmo, o mal do urubu é achar que o boi já morreu! - Os dois riram e viraram mais um copo de cerveja, arrematando com um gole na cachaça. O moço tornou a encher os copos.

- Bonito aquele carro aí em frente não é? É de quem?

- Não sei, estacionaram ele aí ontem à noite, um sujeito que não conheço, coisa estranha. Parou o carro, entrou aqui, tomou um refresco, e entrou num ônibus que parou logo em seguida e foi embora. Não entendi nada. Com um carro daqueles, quem ia ficar sacolejando nos cata-cornos daqui?

O estranho meteu a mão no bolso do paletó e puxou uma chave, levando-a aos lábios como se pedisse silêncio. Prosseguiu sussurrando.

- É pra mim, eu pedi que ele trouxesse o carro pra cá pra mim... Vim buscar uma encomenda que chega no próximo ônibus.

- Qual o quê! É feio mentir pros mais velhos, nada que vem nesse ônibus presta, acho que só galinha ainda presta pra viajar nesses cacareco que roda por aqui!

- Depende, meu amigo, tem hora que um desses pode trazer algo que valha a pena.

- Só quero ver, mas acredito em você, não sou de discordar de quem é bom de prosa e ainda me paga bebida.

Ficaram em silêncio alguns instantes, saboreando as bebidas e tentando não derreter sob o calor escaldante da tarde. Outro ronco perturbou novamente o silêncio quando outro ônibus apontou na esquina. O rapaz terminou a cerveja de seu copo e emborcou o copo, fazendo o mesmo com a cachaça. Enquanto o coletivo estacionava, ele colocou a garrafa de cachaça pela metade dentro da mala e colocou uma nota graúda sobre a mesa.

- Obrigado pela companhia, a conta está paga e a garrafa que separei é sua. Isso aqui é um agradecimento pela boa conversa e pela companhia. Beba uma à minha saúde depois.

A porta da condução se abriu e uma moça saltou, carregando uma pequena valise nas mãos. Morena, miúda e muito bonita. O vestido justo realçava suas formas e ela cumprimentou o rapaz com um beijo nos lábios. Ele a enlaçou pela cintura e pegou sua bolsa, carregando as duas sem esforço em uma só mão. Levou a mão ao chapéu num cumprimento, o bêbado retribuiu levantando o copo de cana e tombando a cabeça para frente.

O casal afastou-se abraçado e caminhou até entrar no carro estacionado do outro lado da rua. O estranho arrancou com o veículo, acenando para o velho, que entrou no botequim e pegou a garrafa paga que o forasteiro havia lhe dado. O dono do bar voltara a cochilar e nem vira o casal sair. Melhor assim, ninguém ia saber qual a encomenda que o moço viera buscar ali. Meteu a garrafa debaixo do braço e foi para casa, aquela ia ficar num lugar de destaque na sala e só ia ser aberta em ocasião especial. Afinal, não era todo dia que se ganhava um presente naquele fim de mundo.

4.8.10

Aquarela

- Eu devia ter te feito um filho enquanto podia.

- Não pensa nisso agora, só sossega e fica aí quietinho, não quero falar sobre isso. Passou. Ponto.

Ela estava deitada, uma manta cor-de-rosa a cobria até o busto. Os braços muito brancos estavam repousados sobre a barriga e os cabelos loiros espalhados pelo travesseiro emolduravam o rosto pálido. Ela era bonita, muito bonita. Uma beleza clássica, de atriz de cinema mudo, como ele sempre comentava. Agora ela estava ali deitada. Os olhos verdes fechados, uma expressão de paz e resignação no rosto. Os lábios, antes rosados, quase se confundindo com a brancura da pele.

Ele levantou-se da cadeira e foi até a janela. Do lado de fora, um sol tímido começava a secar o sereno da grama. Ela agora morava num sítio afastado, numa cidade do interior onde ninguém a conhecia. Olhou para a cama, ela dormia tranqüilamente. Resolveu dar uma volta pela casa. Viajara a noite toda, assim que recebera a notícia e chegara há poucos minutos. Ela acordara apenas para recebê-lo e falar um instante sobre a cirurgia, antes de pegar novamente no sono.

A casa era simples, mas confortável, decorada com o bom gosto que era peculiar à dona. Ele passeou pela sala. Um jogo de sofás com mantas coloridas, uma estante de livros ocupando toda a parede e um aparador com galinhas de todos os tamanhos, feitios e materiais. Pegou uma, de cerâmica, e limpou uma pequena mancha de poeira do bico do bibelô, voltando a colocá-la no lugar. Os quadros abstratos nas paredes faziam um contraponto interessante com aqueles bichinhos inanimados. Sentiu-se afundar no tapete felpudo enquanto ia até o quarto de hóspedes, que também era usado como escritório.

Ali a decoração era mais sóbria. Uma cama, mais uma estante abarrotada de livros e uma mesa antiga com um computador portátil em cima. Em uma das paredes, um desenho emoldurado lhe pareceu familiar. Aproximou-se e conferiu a assinatura. Sua ex-esposa. Engoliu em seco. Uma aquarela representando um casal na praia. Os tons estavam mais amarelados do que na época da pintura, dando ao quadro uma aura de simpática decadência. Fechou os olhos quando lembrou o dia em que o quadro fora esboçado e dos dias seguintes, em que observou as cores invadindo o papel. Sem pressa, delicadas e inexoráveis.

Saiu do quarto e foi até a cozinha. A empregada estava terminando de preparar a mesa de café. O cheiro de bolo de milho e de café recém preparado deu-lhe algum ânimo. Parou no umbral da porta. No quintal, algumas galinhas ciscavam na grama perto da pequena horta que ela mantinha como passatempo. Ela agora estava vivendo em paz, feliz. Parecia nem lembrar-se dele ou da paixão que os tinha tragado anos antes. Depois de tanto sofrimento e prazer sentidos apenas por eles dois, ela já devia ter se refeito e afastado seus demônios interiores, coisa que ele ainda não fizera.

Pegou a bandeja de desjejum que a empregada havia preparado e levou até o quarto da cunhada, ainda lembrando o dia em que os dois posaram para a irmã dela na praia.