22.2.12

Matinê

Eram as mesmas músicas de quando ele era criança. Impressionante como o mundo era cíclico. Girava, girava e nunca saía do mesmo lugar. Olhou para o filho, um garoto de quatro anos que parecia ser a única coisa realmente importante que havia feito na vida. O moleque tinha ficado lindo de pirata. Lembrou de si mesmo, dos carnavais em que a mãe fantasiava-o junto com os irmãos e os carregava para os bailes do clube da cidade. Lembrava das fotos amareladas do velho álbum na casa dos pais. Ele de pirata, índio, Homem-Aranha.

Lembrava claramente que foi aos matinês até os sete anos. Depois desistiu, cansou, parou. Nunca mais brincara carnaval. Não lembrava o motivo. A única recordação era de um belo domingo de carnaval ter anunciado que não iria ao bailinho das crianças. Era o irmão do meio. A mãe julgou que ele tinha direito de escolher e deixou-o em casa, carregando pela mão um sultão e um índio. Eles saíram e ele também. Montou na bicicleta e partiu para a pracinha perto de casa. Ficou rodando por horas na calçada oval. Até quase escurecer. Sozinho, sem pensar em nada. Só pedalando, sentindo o vento quente de fevereiro no rosto.

A cidade toda estava dedicada aos festejos de Momo e a pracinha era só dele. As calçadas eram totalmente suas. Pedalava e pedalava. Ora mais lento, como se passeasse, ou correndo, numa disputa imaginária. Naquele momento, lembrando da infância, deu-se conta que sua vida, desde então, era uma repetição do movimento iniciado na pracinha. Voltas e mais voltas sem sair do lugar. Fora um estudante sem brilho, mediano. Conseguira passar raspando para uma faculdade pública. Se formara sem transtornos ou glórias, nunca acima do razoável, nunca abaixo do aceitável. Passara para um emprego insosso e sem graça em um concurso público. Namorara, casara, tivera o filho e ela o largara logo em seguida.

Fazia um ano e meio. Agora ela viajara para Olinda com o novo namorado e deixara o filho com ele durante o carnaval. Sem saber muito o que fazer, comprara a fantasia de pirata e levara o garoto para o clube do bairro. Dera um saco de confetes e serpentinas para o menino, que lhe devolvera os pacotes e agora pulava de mão dadas com uma odalisca e outro pirata.

Passeou os olhos pelo salão. Mães, pais e filhos de todas as idades, tamanhos e cores. Uma mulher chamou um pouco mais sua atenção e ele colocou-se melhor para observá-la. Era alta, loira, não mais de trinta e cinco anos. O corpo era escultural, ela parecia uma modelo. Capa de revista. O sorriso largo cantando uma marchinha com o dobro da idade de seus ombros dourados. Com ela, uma menina tão linda e loira como a mãe. As duas de mãos dadas. A criança com um chapéu de fada parecia ser da idade de seu filho e tinha um sorriso tão lindo quanto o da mulher.

Sentiu um calor estranho ao tentar ver melhor as mãos da loira, torcendo para não encontrar nenhuma aliança nos dedos dela. Mesmo sabendo que isso não era certeza de nada. Foi-se o tempo que mulheres comprometidas era somente as que usavam alianças. Nada nas mãos com longas unhas pintadas de vermelho. Procurou o filho com os olhos, assustado por ter ficado tanto tempo sem vigiá-lo, entretido com a desconhecida. Respirou aliviado quando o viu, junto com uma melindrosa, amarrando um índio com serpentinas a uma pilastra.

Sentiu a boca seca. Comprou uma lata de cerveja. Engoliu praticamente metade do líquido em um único gole. Não era de beber, mas sentiu-se muito bem. Estalou a língua e arrematou a bebida. Sacudiu o corpo. A boca começou a acompanhar a letra da música que um grupo se esgoelava cantando no palco improvisado na quadra do clube. Contrariando toda uma vida desde aquele carnaval da bicicleta, teve um ímpeto e correu até o filho. Pegou-o e colocou-o à cavalinho no pescoço e saiu rodando pelo salão.

O filho se divertia, jogando confete do alto em cima de outras crianças. Sentiu-se melhor ainda com as gargalhadas do garoto. Quando viu, estava ao lado da loira, que agora dançava com a filha no colo. Sem nem pensar, parou um milésimo de segundo ao lado dela, a boca colada ao ouvido coberto pelos fios dourados, tempo suficiente para berrar as palavras mais ousadas que nunca havia dito.

- Você é a mamãe mais gostosa do matinê!

Ela fuzilou-o com o olhar e ele quase deixou o garoto cair. Foi salvo por um bando de pré-adolescentes que passaram entre os dois, fazendo trenzinho. Sentiu vergonha de si mesmo. Parecia que o que tinha feito era feio, errado. Levou o filho até onde estavam anteriormente. Colocou o menino no chão e voltou para o balcão. Pediu outra e mais outra cerveja, enquanto olhava o filho distraído. Na quarta lata de cerveja, o grupo atacou de Cidade Maravilhosa. Era a deixa para ir embora. Comprou um refrigerante para o filho e pegou-o pela mão. Ele já estava tão cansado que nem reclamou muito de ir para o colo e para casa.

Meio bêbado e meio triste, foi arrastando-se para o apartamento naquele início de noite.O filho adormecera em seus braços. Por sorte, não morava muito longe. Chegou em casa e foi colocar o garoto na cama. Ao tirar a fantasia do filho, um papel preso numa dobra da roupa chamou-lhe a atenção. No verso do canhoto de um ingresso do matinê, em uma letra que parecia desenhada, um recado com um número de telefone no final:

"- Desculpe, mas me assustei com você. Mas te olhei depois e senti que estamos num mesmo barco. Será que dá para remarmos juntos um pouco?"

12.2.12

A decisão

- Não... não faço a mínima questão de você ficar mais um pouco ou não. O que você decidir está bom pra mim.

O tom de voz dele não tinha nenhum tom de sarcasmo ou desafio. Não fosse pelo conteúdo, a entonação pareceria um comentário sobre o tempo. Estavam os dois deitados. Ele nu, e ela só de sutiã, os cabelos desarrumados e o batom borrado. Ela tinha os olhos escuros e enormes, com cílios que pareciam postiços. Ela puxou o lençol até o umbigo, como se sentisse vergonha de continuar exposta perto dele. Eram amantes há muito tempo e ela nunca o entendia muito bem. Gostava do jeito dele, de como ele a fazia rir, do jeito com que ele conseguia proporcionar-lhe orgasmos intensos e avassaladores. Ela adorava o apartamento bagunçado, cheio de livros espalhados e pôsters de cinema nas paredes encardidas.

Amigos em comum haviam feito os dois se esbarrarem e a química entre os dois foi tão instantânea e intensa que no meio da festa estavam se atracando na escada de incêndio. Ela inventava mil desculpas em casa para o marido e sumia com ele na noite do rio. E nas tardes e manhãs também. Horário de almoço no motel. Como ele conseguia aquilo com ela? Como ele a dominava completamente? Porque ele era tão legal, tão carinhoso? Olhou para o lado. Os olhares se tocaram. Só podia ser aquilo. Os olhos dele. Escuros como os dela, profundos. Toda a vez que ela se pegava olhando para aqueles olhos, tinha a sensação de que ele conseguia enxergar através dela. Dentro dela. Ele tinha olhos de raios-X. De alguma forma, ela sentia que ele conseguiria vê-la nua mesmo que se estivesse de burca. Ela sabia que ele podia ver sua alma, seus conflitos internos, suas vontades. Ele parecia adivinhar o que ela pensava. Se não era assim, como ele conseguia antecipar suas vontades na cama? Como teria aparecido com um tiramisú sem nunca ela ter falado que era seu doce predileto?

E os presentinhos? Coisas tão bestas e impactantes. O broche com um yorkshire pintado. O ímã de geladeira com Marylin nua no lençol vermelho. "Aquele" livro de Clarice. Os beijos atrás da orelha. Tudo tão lindo, tão intenso. Como podia ser aquilo? Como é que ela não se sentia culpada em trair o marido? Em deixá-lo em casa e se entregar àquele homem? Ela sabia que ele era sozinho, solteiro. Porque ele nunca lhe pedia que saísse de casa e que se tornassem um, já que eram tão conectados? Ela tinha a certeza absoluta de que eram almas gêmeas! Ansiava por um tropeço do marido para poder abandoná-lo. Não tinha coragem de pedir a um que a assumisse, nem ao outro que sumisse.

Aí se sentia má. Perversa. Como poderia abandonar o homem que a quisera pra si quando ela achava que nunca teria nada de seu? Como deixar aquele que era seu esteio, seu sustentáculo. O outro era ótimo, mas era o marido que estivera ao lado dela em todas as suas provações. Mordeu o lábio até sentir uma pontada de dor percorrendo a espinha. Ela tinha de acabar com aquilo. Aproveitar a deixa daquela frase, como faziam os atores no teatro. Usar como escada o jeito distante dele e pôr fim àquilo tudo. Voltar a ser a mulher de três meses antes. A pacata e ordeira mulher de antes de saber dele, de provar aquele gosto, de sentir aquele cheiro, de ver aqueles olhos que a desnudavam.

Respirou fundo, tomando toda a coragem que tinha. Convicta do que deveria fazer. Levantou-se, vestiu as roupas sem pronunciar palavra. Sim, aquilo é que era o certo a ser feito. Ajeitou os cabelos pelo espelho do armário e calçou as sapatilhas vermelhas. Pegou a bolsa sobre a mesinha e deu a volta na cama, até onde ele estava deitado, imóvel e silencioso desde aquela frase. Só os olhos dele pareciam querer falar algo que ela sabia não querer ouvir. Debruçou-se sobre ele e, com um beijo na testa dele, fez a única coisa que lhe pareceu ser a correta.

- Me vou, querido... é o melhor para nós dois. Se eu conseguir a folga na quarta, eu te ligo para irmos ao cinema juntos. Te quero bem.