11.2.11

Patético...

- Você é patético.


A frase dela ainda ressoava em seus ouvidos, mesmo depois de tanto tempo. os jeans manchados, um número maior que ele, presos à cintura por um velho cinto de couro bege. Os tênis imundos e a camiseta rota. Ele metia as mãos nos bolsos, olhos baixos, envergonhado, humilde. Humilhado. Ela metendo a mão dentro da bolsa e puxando um punhado de notas de dez. Contou cinco e jogou sobre a mesa. A voz sibilando a maldita frase.

- Você é patético.

Ele guardou as notas num dos bolsos e saiu, toda a mudança dentro de uma mochila de lona. Foi-se embora com o rabo entre as pernas. Enxotado como um cachorro vadio. Cinqüenta contos de esmola. A conta exata para uma passagem de ônibus e um lanche. Que recomeçasse a vida longe dela. Que parasse de envergonhá-la em frente dos novos amigos dela. Que tivesse modos. Que estudasse português e parasse de falar 'menas' e pluralizasse as palavras. Ela o humilhou novamente, antes de pô-lo para fora de casa. Com um punhado de roupas e uns trocados, para que ele a largasse de vez. Ela ligara para o patrão dele, que o demitira sem perguntar muito. Acreditando em tudo que ela dizia. Era o meio que ela tinha de tirá-lo de sua nova vida. Uma vida cheia de glamour e dinheiro, onde um balconista não tinha espaço.

- Você é patético.

Ele saiu pela rua com aquilo nos ouvidos, Trôpego como um bêbado. Os olhos úmidos. Pra quê tanta crueldade? Ela tinha terminado a faculdade com a ajuda dele. Ela era brilhante sim, ele sempre soube. Era previsível que conseguisse o emprego no maior escritório de advocacia da cidade. Um ano escondendo-o dos novos colegas, até que teve de levá-lo a um evento. Ele tentou ficar em um canto, mas eles o chamaram, riram de suas histórias simples, de seu vocabulário parco, de suas tiradas ingênuas. Foi a primeira briga quando voltaram para casa. Ela envergonhada dele e ele não tinha feito nada de errado. Daí em diante, tudo era culpa dele. Nada que fizesse estava bom para ela. Quando chegou em casa, dizendo que havia sido demitido, ela só tivera para ele aqueles trocados e a frase.

- Você é patético.

Mesmo anos depois daquela noite, ele ainda ouvia aquela frase em sua cabeça. Agora com outros sentimentos. Saíra da cidade. Viajara para o interior. Um primo conseguiu para ele um emprego em uma loja. Trabalhando de dia e estudando a noite, completou o segundo grau. Sua paciência e boa vontade tornaram-no o vendedor mais rentável da loja. Casou-se, teve filhos. Montou seu próprio negócio e prosperou. Abriu filiais, comprou casa de praia e carro blindado. Era um homem realizado, mesmo quando aquela voz aguda vinha relembrá-lo de um passado distante.

- Você é patético.

Estava visitando uma de suas lojas quando a viu. Ela continuava muito parecida. Só que mais seca, enrugada e embrutecida. As roupas caras e as jóias não disfarçavam a vivacidade que ela perdera ao longo do caminho. Tinha o sorriso amargo. Fez questão de atendê-la, sem se identificar. Lidou com ela sem que ela notasse quem ele era. Ele continuava o mesmo. O mesmo sorriso, o mesmo jeito manso de falar. Apenas errava menos. Estava mais gordo e os cabelos começavam a embranquecer nas têmporas. Tirando esses detalhes era o mesmo maltrapilho que ela enxotara quinze anos antes. Ela escolheu o produto que queria, com a ajuda dele. Mesmo com todos a atenção dele, ela sequer se dignara a olhar em seus olhos, tratando-o como um ser menor. Um nada. Ela entrou na fila do caixa enquanto ele se dirigia ao setor de empacotamento.

Reclamou muito da demora do empacotador, que aliás, era ele mesmo, pegou o embrulho e levou para casa. Um belo apartamento num dos bairros mais nobres da cidade. A casa vazia, exceto por um poodle. Sem marido, sem filhos. Seca. Abriu o pacote e, junto com os cheques que havia preenchido na loja, viu um pequeno cartão escrito a mão.

"Receba isso como um presente por tudo que fez por mim... se não fosse por você eu não teria passado de um patético primeiro namorado para um patético dono de loja"

8.2.11

O livro

Ela escrevia um diário. Ou melhor, não era bem um diário. Era um velho livro de registro, desses usados em hotéis para controlar o fluxo de hóspedes. Ela o achou na casa da avó materna e o pegou para si. Era imenso, desajeitado. A capa de couro, grossa e dura, já começando a ressecar.

Ela o levou para casa, passou hidratante no couro. Havia lido em uma revista que isso era bom para jaquetas e afins. Gostou do resultado. Colocou seu nome na primeira página e sempre que dava na telha, escrevia algumas linhas ali. E escrevia, desenhava. Desencavou no armário uma caixa de lápis de cor da época do colégio e recordou os elogios nas aulas de arte, desenhando borboletas e bonequinhas nas margens amareladas do papel.

O velho livro se transformou em seu divã. Largou a terapia e quando o namorado terminou com ela, mal chorou. Só encheu duas daquelas páginas enormes com as coisas que a irritavam nele. Catarse. Deixava ali gravadas as cartas que escrevia e as que nunca escreveria. Os pensamentos mais ocultos e íntimos. Os desejos mais inocentes e até aqueles que fariam corar os mais despudorados. E melhor, o livro parecia nunca acabar.

E ela se descobriu poeta, historiadora, escritora, pirata. Uma menina sapeca nasceu nas páginas do velho livro. Ali ela era a única dona de sua história. Quando algo não funcionava em seu dia-dia, ela o consertava no papel, guardava o volume numa caixa sob a cama e dormia sorridente.

Um dia conheceu um belo rapaz, apaixonou-se e aceitou viajar com ele. Casaram longe da família dela e ficaram meses viajando, rodando o mundo, completamente aventureiros e desimpedidos. Longe do livro, não pode registrar o exame positivo de gravidez ou a primeira foto do bebê.

Só não fugira de casa porque ligava toda quarta-feira pra mandar notícias. De quando em quando, ao assinar alguma coisa ou escrever bilhetes, lembrava-se do livro e vinha uma saudade boa, dessas que faz suspirar.

Um dia voltou para casa, de mala, cuia, marido e bebê. Depois da festa, com todos dormindo, voltou a seu antigo quarto. A caixa continuava sob a cama, o livro dentro dela, intocado em todos aqueles anos.

Folheou-o como quem abraça um velho amigo, cheirando as páginas, beijando o papel e a capa novamente ressequida, umedecendo-a com as lágrimas de saudade. leu alguns trechos aleatórios e viu como tinha crescido após aquelas letras. Guardou-o com carinho e foi dormir, leve como antes.

No dia seguinte havia um estranho quadro na sala. Um velho livro de registro em uma belíssima moldura dourada. Sobre o aparador. Sobre toda uma vida.