21.12.10

Final de Campeonato

- Dimbra! Dimbra!

Ele ouvia os gritos do treinador. Parecia que o Leleco estava do seu lado, correndo, bufando e berrando. Mandando driblar o último defensor adversário antes do gol vazio, escancarado, uma enorme boca de madeira, pedindo a bola, gulosa. Olhou para frente. Apenas um oponente entre ele e a glória. Betinho, dois anos mais velho, morador da rua de baixo. Grandalhão, briguento, com fama de zagueiro violento e sem limites. O outro vinha em sua direção, pesado, suado, o rosto vermelho, cansado. Era final de jogo, provavelmente o último lance da final da liga estudantil da cidade. Colégio contra colégio, pobres contra ricos, empregados contra patrões. Todos ali, nas arquibancadas de alvenaria do campinho do Aliança Esporte Clube, o único com piscina do município, orgulho dos bacanas de Monte Verde e objeto de inveja dos menos favorecidos, que tinham o campo de terra batida e as mesas de víspora do Clube Operário como opção de lazer. Ali estava ele, mirrado, amarelento, desnutrido, contra um garoto com o dobro do tamanho, mas ambos tinham as mesmas condições ali no campo e com uma leve vantagem para o Davi de chuteiras remendadas contra o Golias de rosto vermelho. Um drible, um gol. E a glória

- Dimbra! Dimbra!

O técnico devia estar com as veias do pescoço da grossura de um dedo, de tanto berrar. No minuto anterior, jogo empatado, o goleiro do time do Colégio Santo Amaro, freqüentado pelos filho das melhores famílias, tentara sair jogando, já nos descontos. Tomara a bola do goleiro, dera um drible que deixou o arqueiro sentado e agora partia contra o gol vazio, tendo apenas o zagueiro Betinho diante de si. Passou a perna por cima da bola, como fizera tantas vezes, jogou o corpo de um lado para o outro, não dando ao inimigo a chance de imaginar para onde ia. Driblaria Betinho, entraria com bola e tudo dentro do gol e sairia correndo para abraçar os colegas.

- Dimbra! Dimbra!

Conseguia ouvir a voz dos pais junto com a do técnico, sabia que eles estavam ali, berrando junto, torcendo. Aquele gol redimiria todas as surras que levara quando o futebol colocara o estudo pra escanteio, Seria um gol para apagar cada nota vermelha no boletim, cada zanga da mãe, cada correiada do pai, Ali eles veriam que ele era um craque da bola. Um Pelé de calças curtas, tão genial como aquele que eles ouviam no rádio. Ele driblaria o zagueiro violento, deixaria-o de bunda no chão como o goleiro metido a atacantes, esfregaria na cara de todos aqueles moleques criados a leite de pêra quem ele era, porque ele era sempre o primeiro a ser escolhido nas peladas de sábado.

- Dimbra! Dimbra!

Traçou o melhor rumo até o gol. As meninas gritavam também, dando pulinhos, ele nem olhava para elas, mas sabiam que todas estavam lá, olhando pra ele, o foco de todas as atenções. Até Danuza, filha do Leleco da padaria estava ali, ela e o rostinho coalhado de sardas com quem ele sonhava todo dia. Ele faria o gol e tinha a certeza de que ela viria dar-lhe um beijo pela vitória. Aí ele se encheria de coragem e a convidaria para ir com ele ao matinê de domingo no Cine Tupã, ver uma fita e ficar de mãos dadas na sala escura. Depois daquele gol, ela e todas as meninas da Grupo Escolar iam querer ir ao cinema com ele.

- Dimbra! Dimbra!

Agora era a hora, o marcador estava perto, conseguia ver os olhos injetados do adversário. Tornou a passar o pé sobre a bola, fez que ia pela direita e se jogou para a esquerda, para voltar imediatamente para a direita em seguida. O marcador previu o primeiro drible, mas não o segundo. A bola passou pelo zagueiro, mansa, obediente. O atacante abriu o sorriso, sentindo o vento no rosto, nada entre ele e a vitória. A glória suprema do gol no último minuto. A boca do gol, pedindo a bola que ia colada a seus pés, dengosa, macia. O grito da torcida, já se abraçando, antevendo o triunfo, o primeiro campeonato do Grupo Escolar Professor Demóstenes Barreto em todo a história da liga estudantil. Apenas alguns metros, quatro ou cinco passos até a redenção... e tudo ficou escuro.

No dia seguinte, quando acordou, soube que o zagueiro o atingira com um soco por trás e ele desmaiara antes de chegar ao gol. A torcida invadiu o campo, numa briga generalizada que só acabou com a chegada do destacamento policial. O juiz terminara a partida e a taça ficara com o adversário, que jogava pelo empate. Ele ficara desacordado resto do dia e a noite toda, o médico disse que tinha tido uma concussão, mas que isso não iria trazer nenhum problema. Como consolo, só o bilhete da Eliete, filha da vizinha, querendo saber se ele queria convidá-la pra ir ver uma fita no Cine Tupã, na sessão das quatro.