24.2.10

À noite

- É mais fácil te pagarem uma cachaça do que um salgado. E o preço é o mesmo.

A frase martelava sem parar em seus ouvidos. Quase dois dias sem comer, mendigando em botecos e biroscas. Os olhos baços de fome enchiam-se de desejo pelos salgados queimados e gordurosos nos pratinhos da vitrine. Ainda lembrava do homem gordo e suarento que, do alto de sua bem nutrida circunferência, deu-lhe um tapinha nas costas e meteu-lhe um copo plástico cheio de cerveja na mão. Bebeu com sofreguidão, o líquido dourado pelo menos faria alguma presença no estômago. A fome foi confundida com vício e risos espocaram em volta do balcão.

- Tá vendo, é fome nada, tá é seco por uma gelada!"

A piada doeu mais que as pontadas no estômago e ele se retirou feito cachorro que fez mal-feito, arrastando os pés. Ficou sabendo que um pessoal costumava passar por ali para dar quentinhas aos moradores de rua. Tentou se sentar numa ponta da calçada, mas foi enxotado pelos outros mendigos, a comida nem era pouca, mas não iam deixar mais um se aproveitar da caridade alheia.

Viu um carro se aproximando, faróis baixos, a velocidade cada vez mais reduzida. Achou que seria uma alma caridosa e esperou. Levou um susto quando a garrafa plástica cheia de álcool explodiu em seu peito. Nem havia se recobrado quando um fósforo, jogado pelos garotos de dentro do carro transformou-lhe o corpo numa boal de fogo. Rolou pelo chão, tentando apagar as chamas, enquanto os rapazes arrancavam com o carro, rindo do espetáculo que iluminava a madrugada da cidade.

Morto de fome, morreu queimado, como os salgados que lhe haviam sido negados. Virou churrasco na avenida, manchete no jornal no dia seguinte, estatística pouco depois, cova rasa pra todo o sempre.

19.2.10

Fumaça e trumpete

A porta fechou-se atrás dela sem ruído. A fumaça do ambiente abraçou-a afetuosamente, embriagando-a com um hálito doce e perverso. De longe, muito longe, um som chegou-lhe aos ouvidos. Procurou o balcão e um copo cheio de gelo, com uma bebida que lhe queimava as entranhas. Apoiou os cotovelos sobre a madeira ensebada e acendeu um cigarro. Queria contribuir com a decoração do ambiente. O som era cada vez mais pungente, quase choroso e ela começou a sentir um aperto por baixo do miúdo seio esquerdo. Uma lágrima umedeceu-lhe os olhos, parte pela dor da música, parte pela fumaça acre do salão. A batida vigorosa de uma caixa trouxe-a de novo ao mundo. Apertou os olhos no exato momento que o homem do trumpete tirava a surdina e o suíngue da banda parecia socar a fumaça azulada nas paredes. Foi tomada por uma vontade incontrolável de dançar, mas resignou-se a bater com a ponta das sandálias no apoio de latão para os pés.

Olhou para o relógio enevoado por cima da prateleira de bebidas. Já era hora. Virou-se em direção à porta, esperando a fumaça se abrir e dar passagem a quem ela sabia que não demoraria a chegar. Realmente não demorou. Ela ainda estava na primeira metade da bebida marrom e cheia de gelo quando ele entrou. O sorriso amplo, de dentes brancos e grandes, os gestos largos, o rosto moreno e brilhante. De cada lado, uma moça de vestido curto e sorrisos de notas de cinqüenta.

Levantou-se, deixando uma cédula sob o copo mal bebido e furou a fumaça em direção ao trio. Viu o sorriso murchar no rosto do meio quando se aproximou. Os olhos dele piscaram uma, duas, três vezes. E quando o trumpete atacava um solo em mi bemol, um direto de esquerda encontrou o nariz abaixo daqueles olhos que piscavam de fumaça e surpresa. Com o homem caído na névoa e o grito das acompanhantes se misturando aos berros do trumpete e à fumaça azeda, ela saiu do bar, embalada pelo solo estridente do trumpetista, mais leve que a fumaça azulada que ela deixava pra trás.

11.2.10

Cobranças

- Tá bom, eu te empresto o livro, agora me deixa quieto.
- Queria que você me ouvisse mais. Cê tá sempre correndo pra baixo e pra cima e esquece de mim.
- Não, eu não esqueço de você. Eu apenas tenho um jeito diferente de ver a vida, de encarar as coisas. Eu organizo meu tempo diferente de você.
- Organiza e me deixa com as migalhas. Você não tem tempo pra mim, só pra esse teu trabalho estúpido.
Ele colocou o livro sobre a mesa e olhou para ela. Respirou fundo, medindo as palavras, deixando o silêncio preparar a situação para uma frase de efeito como a dos filmes que viam juntos. Para um frase forte, dessas de um diálogo que fosse lembrado em conversas de botequim. Para uma frase que ele sabia que não viria. Deixou o silêncio prepará-la para ouvir uma frase como todas as frases comuns do cotidiano. Uma frase tão pequena quanto a vida miúda deles dois.
- Meu trabalho não é estúpido, ele te comprou esse vestido e esses brincos. E ele paga o aluguel desse apartamento.
Ela deixou-se cair na poltrona em frente a ele. As pernas ainda eram tão bonitas como quando eles se conheceram.
- Eu sei, eu só não quero mais ficar tanto tempo sozinha.
- Eu não estou te deixando sozinha, eu estou aqui...
- Mas parece que não está!
- Poxa, eu trabalhei pra caramba hoje, quero só uns minutinhos pra relaxar... aí depois eu vou ser todo seu, você sabe disso... até quando você não quiser mais.
- Eu não quero ficar sozinha!
- Você não está sozinha - ele levantou-se, jogando o livro sobre a mesa, Foi até ela e a abraçou, beijando-a - eu estou aqui, e você não está sozinha!
- Obrigado... sabe... eu preciso disso... pra ficar sozinha eu não venho pra cá e fico com meu marido.