26.3.10

Só isso

e às vezes me sinto só
com gente na sala ao lado
no meio do bloco da terça-feira
no vazio da repartição

às vezes me sinto só
no balcão do botequim
no meio das gargalhadas dos amigos
e do chope bem tirado

às vezes me sinto só
com tanta coisa pra pensar
minúcias tão grandiosas
que só eu mesmo a imaginar

às vezes me sinto só
como nunca pensei estar
mas aí estufo o peito, levanto os olhos
me forço a recomeçar

22.3.10

Fim de festa

Todos já tinham ido dormir. Abriu a geladeira. Uma derradeira garrafa de cerveja. Abriu-a e despejou parte do líquido dourado em um copo grande, de vidro. Agora que todos haviam ido embora, podia dispensar os tétricos copos plásticos. Olhou para o chão, salpicado de pequenos pedaços de papel. A sobrinha havia feito um saco de papel picado para jogar no pai na hora dos parabéns. Achou o gesto da pequena bonito. A menina amava o pai, não era por menos, o cunhado era um sujeito ótimo. Fazia muito bem à filha e à irmã, que também era apaixonada por ele.

Sorriu melancólica ao lembrar da festa. Farra pequena, casa de subúrbio cheia com dez ou doze convidados. Bebida à vontade, salgadinhos, bolo, docinhos no fim. Uma alegria barulhenta e urgente, música. Coisas boas de se guardar. Fotos, muitas fotos. Até o meio da semana seguinte, todas estariam espalhadas pela internet. Colocadas por todos os que levaram uma máquina digital para o aniversário.

A cerveja ia pela metade. Encheu novamente o copo. Lembrou das moças em quem reparara durante a festa. A morena de boca vermelha que não retribuiu seus olhares e a loira de olhos desbotados e tristes que alegou ter um namorado quando a conversa se tornou íntima e pessoal demais. Idiotas! Virou o resto da cerveja e colocou no copo o que sobrara da garrafa. Guardou o casco sob a pia e pegou uma vassoura.

Ouviu o ronco do cunhado vindo do quarto. Coitada da sobrinha, dormindo ao lado do pai, roncando feito um porco. A pobrezinha cedera o quarto, deixando a cama livre para um sono de canelas para fora do colchão. Sorriu novamente e terminou a cerveja do copo, colocou-o cheio dágua dentro da pia e pegou a vassoura para varrer todo o papel caído no chão. Apoiou-a na perde, juntou o cabelo num coque no alto da cabeça e puxou a saia um pouco para cima, facilitando os movimentos e, solitária, começou a limpar a sujeira para todos poderem acordar um pouco mais tarde no dia seguinte.

18.3.10

Um casal de urubus

Sentiu a pele queimando e a luz fez suas retinas doerem assim que abriu os olhos. Deitado no chão duro, tentou descobrir onde estava, só para perceber que o lado esquerdo de seu corpo estava totalmente paralisado. Mexeu a cabeça o máximo que pôde. Só pode notar que estava entardecendo e que havia uma árvore perto dele, com dois urubus empoleirados num galho seco. A cabeça também doía e ele tentou lembrar como viera parar ali, deitado, paralisado, a boca seca e os olhos doloridos.

Lembrava do embarque no navio que o levou, junto com vários camaradas para o sul. O desembarque e o trajeto até a frente de batalha, a cumplicidade na caserna, as escaramuças contra o inimigo e a diversão no bordel que acompanhava a tropa. A imagem da noiva em seu vestido azul, acenando para ele no porto se confundia com a morena de vestido vermelho sobre quem ele se deitava nas vésperas de batalhas.

Em sua cabeça, os gemidos da china se confundiam com os gritos da soldadesca. Lembrou de estar, junto com mais alguns soldados de seu regimento de cavalaria perseguindo inimigos que fugiam. Lembrava da cara do primeiro paraguaio que passou pelo fio da espada. De como os amigos riam e praguejavam enquanto perseguiam os pobres diabos que fugiam pela campina.

Piscou os olhos, ao seu redor, apenas o ruído do vento nas folhas da árvore. Os dois urubus olhavam um para o outro, indiferentes à sua presença ali no chão. Um começou a alisar as penas do outro com o bico, uma estranha amostra de afeto, que o lembrou da noiva acariciando seus cabelos após a missa de domingo, antes do almoço no sobrado da família.

Em sua cabeça, chegou a imagem de dois paraguaios correndo pra um lado, se separando do grupo principal. E ele guinando o alazão em direção a eles, espada em riste, gritando, sangue nos olhos. Alcançou o primeiro paraguaio e golpeou-lhe o pescoço com o sabre. Guinou o cavalo para o segundo, para terminar o serviço e deparou-se com um orifício negro apontado para si. O paraguaio sobrevivente tinha uma pistola e apontava pra ele. Sentiu uma ardência do lado esquerdo, mas mesmo assim conseguiu acertar o ombro do inimigo, derrubando-o, a espada presa da carne do outro.

Lembrava-se ainda de ter continuado no lombo do cavalo, abraçado ao pescoço do animal, segurando um lenço sobre o ferimento. A imagem da noiva vinha e voltava à sua mente, agora ela estava de joelhos, rezando uma novena na igreja matriz. Tentou cuspir, mas a boca estava seca demais. Nenhum som. Nem de tiros, nem de gritos, gemidos, cornetas. O cavalo devia ter levado-o para bem longe. Teve vontade de chorar, mas controlou-se. Não conseguia mexer-se e sentia-se cada vez mais fraco.

No galho seco, os dois urubus agora pareciam notar sua presença. Haviam parado de alisar as penas um do outro e olhavam fixamente para ele. Fez mais um esforço para se levantar, não conseguiu. Agora a perna direita já não respondia mais, o braço direito cada vez mais pesado. Tentou pegar uma pedra de jogar nos urubus. Não teve força.

Um dos pássaros voltou a alisar as penas do outro com o bico, e ele parecia ver a silhueta da noiva atrás de um deles, e atrás do outro, o sorriso da china ao receber as patacas de prata após o coito. Suspirou e fechou os olhos, cada vez mais cansado, enquanto os urubus continuavam a se alisar, donos de todo o tempo do mundo.

8.3.10

No metrô

Ele entrou no vagão do metrô sem notá-la. Só quando uma senhora deixou cair uma revista e ele se abaixou para pegá-la é que pode vê-la.

Ela era morena e magra. Os cabelos eram compridos, escuros e grossos, deviam ir até o meio das costas, mas ela os prendera numa trança frouxa que caía pelo ombro esquerdo. Era uma mulher comum. devia ter entre 33 e 35 anos, a pele era clara, dessas morenas que pega cor nos primeiros raios de sol, mas que prefere a afago do ar condicionado e fatores de proteção acima de 50 ao invés de loções bronzeadoras. Ela tinha olhos escuros, castanhos ou negros, ele não pôde discernir bem, encimados por sombrancelhas cheias de curiosidade. Ela parecia tr os incisivos um pouco maiores que a estética comum acharia ideais, o que deixava sua boca de lábios finos eternamente entreaberta.

A frente fria que chegara á cidade no final de semana a fazia usar uma blusa vermelha de malha canelada até os punhos e a gola alta escondia um pescoço que ele julgava longilíneo e delicado. Ela tinha mãos magras e esguias, com unhas sem esmalte. Ficou reparandona elegância com que ela virava as páginas do livro apoiado nas calças pretas que ela vestia. Ela parecia ter pernas finas, pensou ele. Desde que fossem harmoniosas, tudo bem, ele não se incomodava.

Achou graça no próprio pensamento, mas sim, aquela era uma mulher com quem ele flertaria numa festa. Elegante, mas não blasé. Bonita, mas não exuberante. Ainda parecia ser culta, o livro em seu colo parecia ser bem grosso, as páginas amareladas deviam pertencer a algum dos clássicos idênticos aos que se amontoavam em sua mesa de cabeceira de homem recém-solteiro. Ficou pensando se a abordava ou não. Estavam se aproximando da última estação e ambos iriam ter de saltar. Será que ela aceitaria um convite para um café na livraria perto da estação? Ou seria melhor convidá-la para jantar? Ou mesmo ir ao cinema, a próxima sessão estava para começar, daria tempo com certeza!

Mas... e se ela estivesse indo se encontrar com alguém? Reparou novamente nas mãos dela, não havia marca de alianças, mas isso não indicava nada. ela poderia estar indo encontrar o namorado, o amante, qualquer coisa. Até mesmo a tia que ela combinara de encontrar para devolver o livro que lia. Será que ele conseguiria se recuperar de mais uma decepção? Não fazia um mês que a mulher se separara dele, saindo de casa após uma discussão imbecil sobre a conta de luz. Um nó na garganta apertava-lhe, sufocando-o.

O apito do metrô trouxe-o de volta a realidade. A composição desacelerava e as poucas pessoas dentro do vagão naquele sábado frio iam se levantando em direção à porta. Ela guardou o livro dentro da bolsa, e ele pôde ver o título "Cem anos de solidão". Era seu livro preferido, lera-o três vezes! Era um sinal dos céus! Estava tão embasbacado que mal conseguiu ir atrás dela quando ela saiu rumo às escadas rolantes. Trombou em alguns passageiros retardatários mas conseguiu alcançá-la antes que ela saísse à rua, tocando de leve no braço esquerdo dela.

Ela se virou e encarou-o nos olhos. Ela tinha olhos surpreendentemente plácidos, como se toda a calma do mundo estivesse ao lado dela. Ele tinha de se rápido, escolher a melhor frase, uma única frase que fizesse com que ela aceitasse continuar a conversar com ele e não achasse que ele era um maluco, um tarado, um potencial agressor. Ele tinha de mandar a frase certa, respirou fundo e disparou, ante os olhos calmos e incrédulos da moça de blusa vermelha:

- Eu queria te chamar para um café, para jantar ou para ir ao cinema, mas eu só consigo falar que sou apaixonado pelo livro que vi você ler...

Mulher

venero
teu gosto doce
agridoce de suor salgado
eternamente em minha boca
em minha língua
sempre a sussurrar teu nome
a me sentir infame
a me achar perfeito
por ser seu eleito
por ter desfeito
todas as tuas esperanças
só pra recontruí-las a teu lado
só pra ter você
inocente e provocante
a me acordar sorrindo
mesmo ao dormir chorando
e acalentar teu pranto
sem razão, sem motivo
e me saber resolvido
a nunca te ver chorar
quando sorrio de tuas lágrimas
e me comovo com teu riso
pra você me ajoelho
na mais abjeta e sublime devoção
que te venero
que te odeio
que te quero
que te desejo
e mais alto me inflamo
que me ofereço
e proclamo
te adoro
te amo
mulher