5.9.12

Maniqueu

metade de mim é amor
a outra metade desprezo
cinqüenta por cento, meio a meio
divididas igualmente
bem pesadas e medidas
balança de nêutrons, prótons, elétrons
nuclear
tão bem partidas que se misturam
café com leite, tal e qual
nem moreno, nem clarinho
só pingado vez ou outra
de conhaques vagabundos
veuve cliquot em vernissages

metade de mim é compromisso
outro tanto cisca pelos terreiros
das noites, sambas, ruas
galinha choca de desejo
arrastando asa, desistindo
morrendo de ressaca moral
se atirando em abismos
de pernas, pêlos e bocas
que engolem sem penar

metade de mim é tudo isso
a outra parte quase é
se destempera, volta atrás
fé de São Tomé
acredita de mãos postas
com os mesmos dedos que cutucam
a chaga exposta em minha carne

metade de mim é paixão
a outra metade é por tua conta

19.8.12

EntreAspas #2


Poisé... eu não resisti e fiz mais uma coletânea. Quase todos esses contos são recentes. Espero que agradem.

É só clicar aqui e baixar... o arquivo é levinho!

PS: Os desenhos são meus e as fotos são de banco de imagem.

Atualizando!!!
Agora, quem quiser ler na net sem precisar baixar os arquivos, é só clicar aqui, para o número dois e aqui, para o número um!

18.8.12

Madrugada de terça

- Boa noite... uma cerveja...

A moça da barraca listou três ou quatro marcas enquanto abria o freezer e ele escolheu a última, de nome mais fácil. Ela pegou a lata e estendeu para ele, dizendo o preço tão mecanicamente quanto fazia os movimentos. Quando ele pegou a bebida, seu indicador bateu levemente duas vezes nos dedos dela, fazendo com que os olhos deles se cruzassem:

- Quando tempo, hein?

Ela soltou a latinha e abriu a boca, os olhos arregalados, como que tentando remontar a figura dele no cérebro. Tantos anos depois e ele continuava muito parecido. As têmporas começavam a se salpicar de branco e a pele estava esticada sobre uma camada mais grossa de gordura mas, no geral, ele mantinha a mesma fisionomia.

- Nossa... quase não te reconheci... tem tempo mesmo... dez anos?

- Onze, doze, por aí...

- Você vinha aqui quase todo dia...

- Segundas, quartas e sextas. Dias em que eu trabalhava à noite. Não venho desde que mudei de emprego. Arrumei um bico por aqui, acabei ficando até mais tarde. Valeu a pena... você continua a mesma.

- E você continua gentil - ela desviou o olhar, olhando para o chão e sorriu, meio sem graça. De havaianas, calças jeans, pochete e uma camiseta justa que deixava parte da barriga de fora, ela continuava muito bonita, mesmo com a cintura e o quadril um pouco mais roliços de quando eles se conheceram.

- E sua mãe e irmãs?

- A mãe agora não trabalha mais... andou meio doente, acabou que convencemos ela a ficar em casa. A Diana, a mais velha, lembra dela? A que quase nunca vinha pra cá? Ela teve um filho e trabalha na cidade, aí a mãe toma conta dele. Ela mora nos fundos da nossa casa. A Denise saiu pouco antes de você chegar, eu e ela continuamos com a barraca, não é grande coisa, mas dá pra viver - Ela tirou um dos pés do chinelo e ficou brincando com o dedo na poeira do chão. A madrugada já ia pela metade e estavam quase sozinhos entre as barraquinhas de comida e bebida que se amontoavam atrás do terminal rodoviário daquele subúrbio. Terça-feira e a maior parte delas estava fechada. A da garota era uma das poucas que ficava aberta até quase amanhecer.

Ele deu um gole na cerveja e sentou-se num banquinho de plástico encardido. Ela continuava calada e o silêncio começava a ficar constrangedor. Ela sentou-se em outro banco, em frente à ele e, sem olhá-lo, quebrou o gelo.

- Acho que quase senti sua falta.

- Eu também... mas não é hora pra falarmos disso, não acha? - Suspirou, desesperançado -  Me fale de você, da Denise... Casaram?

- Ela continua casada, tem uns dois anos. Ele não é grande coisa, mas não complica também. Querem ter um filho ano que vem.

- E você?

- Juntei e larguei. Por um ano e meio e dois tapas. Ainda me pergunto como fui burra o suficiente pra esperar ele levantar a mão duas vezes pra mim. Na primeira, eu desculpei, na segunda, coloquei ele pra fora. Melhor sozinha. Quando esfria é uma merda. Mas é melhor ficar sem ninguém que ficar apanhando... e você? Casou?

- Sim... três anos mês que vem, dia nove.

- E como tá? Gostando da vida de casado?

Outro gole e ele respirou fundo antes de responder - Dias bons, dias ruins... como tudo na vida, né?

- Filhos?

- Ela não quer. Tudo bem, descobri que sou pai de uma garotinha, com uma ex-namorada... ela só me contou agora. Tá com seis anos e é uma graça, Mas mora Em Santa Catarina com a mãe. Só vou lá no aniversário dela. Ainda bem que a mulher lá não encrenca comigo.

- E tem como encrencar com você? Lembro que você era o único com quem a gente realmente - ela frisou o "realmente" - gostava de conversar. Você não era como os outros, você respeitava a gente - deu uma pausa e olhou para o esmalte descascado das unhas dos pés - respeitava até demais...

- E não era pra respeitar não? - Ele deu uma risada divertida, mudou de posição, sentando-se na pontinha do banco, de modo a conseguir tocar os joelhos dela com a ponta dos dedos - Eu sempre deixei claro o que eu queria, não foi?

- Eu sei... eu só me arrependo de ter agido daquele jeito. Foi por causa da Denise, você sabe, né? - deixou a frase no ar e ele demorou um pouco a retrucar.

- Sim... também sei.. mas não dava... ia acabar complicando. Eu não ia conseguir. E aí seria pior pra todo mundo, não concorda?

- É. A merda é que eu achei que fosse pra ser ela, e não eu... eu tinha todo mundo correndo atrás de mim... mesmo aqui, nesse lugarzinho miserável. Ela só tinha a você.

- Feio dizer isso... mas ela acreditava ter a mim... mas eu não era dela... gostei de ter feito o que fiz, mas hoje não faria novamente. Ela não entendeu... e isso acabou bagunçando tudo... e bagunçaria mais ainda se eu não tivesse mudado de emprego. Deus às vezes resolve tudo pra gente...

- Acabou que ela seguiu em frente, tá lá... com os problemas dela, mas tá lá... eu continuo aqui. O tempo passou pra você, pra ela, pra Diana, minha mãe. Pra mim não. Já são quinze anos aqui, fedendo a gordura e cerveja e só.

Ele sentiu toda a amargura da voz dela, mas não havia o que ser feito. Não tanto tempo depois. Por mais tentadora que fosse a situação, ele não ia mexer em feridas que estavam cicatrizadas. Acabou com a cerveja e arremessou-a com maestria em uma lixeira a três metros de distância. Olhou o relógio, levantou-se e puxou algumas moedas do bolso.

- Preciso ir. Meu ônibus deve sair ali do outro lado em dez minutos. Desculpe - estendeu o dinheiro - Já tá trocado

- Se desculpe não, é a vida. E essa foi por conta da casa, por conta do que a gente teve... tem... sei lá...

- Obrigado - guardou as moedas - a gente se vê por aí... mande um abraço pra elas... - aproximou-se e, num rompante, beijou-lhe a testa, levemente.

Ela permaneceu imóvel e ele deu meia volta. Já tinha dado alguns passos quando ouviu-a atrás de si - Vai voltar um dia? Nem que seja só pra conversar? - a voz dela era um fiapo. Ele parou, respirou fundo e demorou um pouco para responder, como que buscando a palavra correta, o jeito certo de colocar um termo decente naquele diálogo.

Virou-se um pouco, o suficiente para olhar para ela e, piscando o olho:

- Toda terça, pelo menos nos próximos três meses... Tempo suficiente pra gente arriscar um palpite sobre como a vida vai caminhar, né?

11.7.12

O Sapo

existe um sapo que coaxa
alto e estridente
no quintal atrás da casa

não há brejo ou lagoa
sequer um charco onde chafurde
o pobre sapo que coaxa

deve ser coxo, pois não foge
em busca de um rio, um açude
algo mais que uma poça
com outros seus iguais

mas o sapo não se detêm
sua voz ecoa na madrugada
e ouço tudo de luz acesa

batuco os dedos na mesa,
viro outro copo, torro cigarros
ouvindo murmúrios batráquios

também não fujo
mesmo não sendo coxo ou tolo
em busca de novos ares
que me afastem desse sapo
que me afastem de meus pesares

15.5.12

Desconversa

o tempo não cura nada
só te dá outras feridas
com que se preocupar

o que cura é garrafada
e noites bem dormidas
para se recuperar

todo o resto é paliativo
pílulas no outro dia, penicilina
feitos pra te distrair

não basta ser emotivo
o jogo começa quando termina
e não dá mais pra fugir

coloque a cabeça no travesseiro do meu colo
enquanto cavo nossa cova no canto do colchão
lá fora nada mais tem a menor importância
se aqui dentro tudo de nós é turbilhão

não vamos nos importar
com o que gritam lá fora
é só não olhar pra lá

quando tudo acabar
só levantar e ir embora
a vida há de continuar

16.4.12

EntreAspas #1


Aí que eu resolvi reunir alguns dos meus contos e montá-los em formato revista, como se fossem ser publicados. Peguei textos de diversas épocas, uns mais antigos, alguns desse ano. Tentei diagramá-los de um jeito bacana. Nesse, só consegui colocar uma ilustração minha na última página, mais que isso só pro próximo, mas vamos com calma, né?

Eu gostei... mas como sou o pai da criança, minha opinião é suspeita... espero que vocês gostem também. Críticas, comentários, sugestões, puxões de orelha e tomatadas são bem vindos!

Para ver como ficou, só clicar aqui! O PDF tá levinho, baixa rapidinho. Leiam e comentem!

15.4.12

(des)Acertando ponteiros

Entrou na loja. O shopping estava às moscas. Segunda-feira, vinte minutos antes do fechamento das lojas. Dia 28. Ninguém nos corredores. A vendedora, uma morena de cabelos amarrados num coque e sombra esverdeada nos olhos estava debruçada no balcão, alheia à tudo, brincando no celular.

Ele pigarreou, chamando a atenção da moça, que levou um susto e empertigou-se com o melhor sorriso amarelo da praça - Boa noite! Em que posso ajudá-lo?

Ele se aproximou, sorrindo também e tirando um relógio do bolso - Eu comprei esse relógio com vocês um tempo atrás. Agora a bateria acabou, vocês têm dela pra trocar?

A atendente com um "Regina" escrito no crachá pegou o relógio, analisando o modelo - Nossa! Tem tempo, hein? Não vejo um desses aqui há anos! Quando você o comprou?

- Tem uns quatro anos, nunca me deu problema. Hoje eu cheguei atrasado no trabalho porque ele parou e eu não notei. Levando em conta o tempo, nem posso brigar com ele, não acha?

Ela olhou para ele e sorriu, abaixando-se em seguida para procurar a bateria sob o balcão. Quando ela levantou-se, com a caixa de baterias e ferramentas na mão ele notou que, na mão direita dela, havia uma marca mais clara no dedo anular. Ficou observando-a trabalhar. Em instantes ela havia aberto o relógio e trocado a bateria. Quando ela foi acertar as horas no relógio recém-consertado, ele resolveu arriscar.

- Ainda dói?

Sem entender nada, ela olhou para ele, que, delicadamente, levou o dedo até a mão dele, tocando suavemente a marca - Aliança? - Ela assentiu com a cabeça, sem falar nada, mas ele reparou que os olhos dela tremeram, como se temessem se molhar - Eu te entendo... - colocou as duas mãos sobre o balcão, retirando um largo anel de prata do anular esquerdo, deixando à mostra uma marca bem mais fina e clara na pele do dedo. Sem levantar os olhos, completou - Três semanas ontem. E não... por mais que pareça, isso não é uma cantada, tá? Só me deu vontade de desabafar...

Ela tocou-lhe a mão, a pele dela era morna e macia. Sem que os olhos dos dois se cruzassem, enfim ela respondeu.

- Quatro dias, e dói como se nunca mais fosse sarar...

22.2.12

Matinê

Eram as mesmas músicas de quando ele era criança. Impressionante como o mundo era cíclico. Girava, girava e nunca saía do mesmo lugar. Olhou para o filho, um garoto de quatro anos que parecia ser a única coisa realmente importante que havia feito na vida. O moleque tinha ficado lindo de pirata. Lembrou de si mesmo, dos carnavais em que a mãe fantasiava-o junto com os irmãos e os carregava para os bailes do clube da cidade. Lembrava das fotos amareladas do velho álbum na casa dos pais. Ele de pirata, índio, Homem-Aranha.

Lembrava claramente que foi aos matinês até os sete anos. Depois desistiu, cansou, parou. Nunca mais brincara carnaval. Não lembrava o motivo. A única recordação era de um belo domingo de carnaval ter anunciado que não iria ao bailinho das crianças. Era o irmão do meio. A mãe julgou que ele tinha direito de escolher e deixou-o em casa, carregando pela mão um sultão e um índio. Eles saíram e ele também. Montou na bicicleta e partiu para a pracinha perto de casa. Ficou rodando por horas na calçada oval. Até quase escurecer. Sozinho, sem pensar em nada. Só pedalando, sentindo o vento quente de fevereiro no rosto.

A cidade toda estava dedicada aos festejos de Momo e a pracinha era só dele. As calçadas eram totalmente suas. Pedalava e pedalava. Ora mais lento, como se passeasse, ou correndo, numa disputa imaginária. Naquele momento, lembrando da infância, deu-se conta que sua vida, desde então, era uma repetição do movimento iniciado na pracinha. Voltas e mais voltas sem sair do lugar. Fora um estudante sem brilho, mediano. Conseguira passar raspando para uma faculdade pública. Se formara sem transtornos ou glórias, nunca acima do razoável, nunca abaixo do aceitável. Passara para um emprego insosso e sem graça em um concurso público. Namorara, casara, tivera o filho e ela o largara logo em seguida.

Fazia um ano e meio. Agora ela viajara para Olinda com o novo namorado e deixara o filho com ele durante o carnaval. Sem saber muito o que fazer, comprara a fantasia de pirata e levara o garoto para o clube do bairro. Dera um saco de confetes e serpentinas para o menino, que lhe devolvera os pacotes e agora pulava de mão dadas com uma odalisca e outro pirata.

Passeou os olhos pelo salão. Mães, pais e filhos de todas as idades, tamanhos e cores. Uma mulher chamou um pouco mais sua atenção e ele colocou-se melhor para observá-la. Era alta, loira, não mais de trinta e cinco anos. O corpo era escultural, ela parecia uma modelo. Capa de revista. O sorriso largo cantando uma marchinha com o dobro da idade de seus ombros dourados. Com ela, uma menina tão linda e loira como a mãe. As duas de mãos dadas. A criança com um chapéu de fada parecia ser da idade de seu filho e tinha um sorriso tão lindo quanto o da mulher.

Sentiu um calor estranho ao tentar ver melhor as mãos da loira, torcendo para não encontrar nenhuma aliança nos dedos dela. Mesmo sabendo que isso não era certeza de nada. Foi-se o tempo que mulheres comprometidas era somente as que usavam alianças. Nada nas mãos com longas unhas pintadas de vermelho. Procurou o filho com os olhos, assustado por ter ficado tanto tempo sem vigiá-lo, entretido com a desconhecida. Respirou aliviado quando o viu, junto com uma melindrosa, amarrando um índio com serpentinas a uma pilastra.

Sentiu a boca seca. Comprou uma lata de cerveja. Engoliu praticamente metade do líquido em um único gole. Não era de beber, mas sentiu-se muito bem. Estalou a língua e arrematou a bebida. Sacudiu o corpo. A boca começou a acompanhar a letra da música que um grupo se esgoelava cantando no palco improvisado na quadra do clube. Contrariando toda uma vida desde aquele carnaval da bicicleta, teve um ímpeto e correu até o filho. Pegou-o e colocou-o à cavalinho no pescoço e saiu rodando pelo salão.

O filho se divertia, jogando confete do alto em cima de outras crianças. Sentiu-se melhor ainda com as gargalhadas do garoto. Quando viu, estava ao lado da loira, que agora dançava com a filha no colo. Sem nem pensar, parou um milésimo de segundo ao lado dela, a boca colada ao ouvido coberto pelos fios dourados, tempo suficiente para berrar as palavras mais ousadas que nunca havia dito.

- Você é a mamãe mais gostosa do matinê!

Ela fuzilou-o com o olhar e ele quase deixou o garoto cair. Foi salvo por um bando de pré-adolescentes que passaram entre os dois, fazendo trenzinho. Sentiu vergonha de si mesmo. Parecia que o que tinha feito era feio, errado. Levou o filho até onde estavam anteriormente. Colocou o menino no chão e voltou para o balcão. Pediu outra e mais outra cerveja, enquanto olhava o filho distraído. Na quarta lata de cerveja, o grupo atacou de Cidade Maravilhosa. Era a deixa para ir embora. Comprou um refrigerante para o filho e pegou-o pela mão. Ele já estava tão cansado que nem reclamou muito de ir para o colo e para casa.

Meio bêbado e meio triste, foi arrastando-se para o apartamento naquele início de noite.O filho adormecera em seus braços. Por sorte, não morava muito longe. Chegou em casa e foi colocar o garoto na cama. Ao tirar a fantasia do filho, um papel preso numa dobra da roupa chamou-lhe a atenção. No verso do canhoto de um ingresso do matinê, em uma letra que parecia desenhada, um recado com um número de telefone no final:

"- Desculpe, mas me assustei com você. Mas te olhei depois e senti que estamos num mesmo barco. Será que dá para remarmos juntos um pouco?"

12.2.12

A decisão

- Não... não faço a mínima questão de você ficar mais um pouco ou não. O que você decidir está bom pra mim.

O tom de voz dele não tinha nenhum tom de sarcasmo ou desafio. Não fosse pelo conteúdo, a entonação pareceria um comentário sobre o tempo. Estavam os dois deitados. Ele nu, e ela só de sutiã, os cabelos desarrumados e o batom borrado. Ela tinha os olhos escuros e enormes, com cílios que pareciam postiços. Ela puxou o lençol até o umbigo, como se sentisse vergonha de continuar exposta perto dele. Eram amantes há muito tempo e ela nunca o entendia muito bem. Gostava do jeito dele, de como ele a fazia rir, do jeito com que ele conseguia proporcionar-lhe orgasmos intensos e avassaladores. Ela adorava o apartamento bagunçado, cheio de livros espalhados e pôsters de cinema nas paredes encardidas.

Amigos em comum haviam feito os dois se esbarrarem e a química entre os dois foi tão instantânea e intensa que no meio da festa estavam se atracando na escada de incêndio. Ela inventava mil desculpas em casa para o marido e sumia com ele na noite do rio. E nas tardes e manhãs também. Horário de almoço no motel. Como ele conseguia aquilo com ela? Como ele a dominava completamente? Porque ele era tão legal, tão carinhoso? Olhou para o lado. Os olhares se tocaram. Só podia ser aquilo. Os olhos dele. Escuros como os dela, profundos. Toda a vez que ela se pegava olhando para aqueles olhos, tinha a sensação de que ele conseguia enxergar através dela. Dentro dela. Ele tinha olhos de raios-X. De alguma forma, ela sentia que ele conseguiria vê-la nua mesmo que se estivesse de burca. Ela sabia que ele podia ver sua alma, seus conflitos internos, suas vontades. Ele parecia adivinhar o que ela pensava. Se não era assim, como ele conseguia antecipar suas vontades na cama? Como teria aparecido com um tiramisú sem nunca ela ter falado que era seu doce predileto?

E os presentinhos? Coisas tão bestas e impactantes. O broche com um yorkshire pintado. O ímã de geladeira com Marylin nua no lençol vermelho. "Aquele" livro de Clarice. Os beijos atrás da orelha. Tudo tão lindo, tão intenso. Como podia ser aquilo? Como é que ela não se sentia culpada em trair o marido? Em deixá-lo em casa e se entregar àquele homem? Ela sabia que ele era sozinho, solteiro. Porque ele nunca lhe pedia que saísse de casa e que se tornassem um, já que eram tão conectados? Ela tinha a certeza absoluta de que eram almas gêmeas! Ansiava por um tropeço do marido para poder abandoná-lo. Não tinha coragem de pedir a um que a assumisse, nem ao outro que sumisse.

Aí se sentia má. Perversa. Como poderia abandonar o homem que a quisera pra si quando ela achava que nunca teria nada de seu? Como deixar aquele que era seu esteio, seu sustentáculo. O outro era ótimo, mas era o marido que estivera ao lado dela em todas as suas provações. Mordeu o lábio até sentir uma pontada de dor percorrendo a espinha. Ela tinha de acabar com aquilo. Aproveitar a deixa daquela frase, como faziam os atores no teatro. Usar como escada o jeito distante dele e pôr fim àquilo tudo. Voltar a ser a mulher de três meses antes. A pacata e ordeira mulher de antes de saber dele, de provar aquele gosto, de sentir aquele cheiro, de ver aqueles olhos que a desnudavam.

Respirou fundo, tomando toda a coragem que tinha. Convicta do que deveria fazer. Levantou-se, vestiu as roupas sem pronunciar palavra. Sim, aquilo é que era o certo a ser feito. Ajeitou os cabelos pelo espelho do armário e calçou as sapatilhas vermelhas. Pegou a bolsa sobre a mesinha e deu a volta na cama, até onde ele estava deitado, imóvel e silencioso desde aquela frase. Só os olhos dele pareciam querer falar algo que ela sabia não querer ouvir. Debruçou-se sobre ele e, com um beijo na testa dele, fez a única coisa que lhe pareceu ser a correta.

- Me vou, querido... é o melhor para nós dois. Se eu conseguir a folga na quarta, eu te ligo para irmos ao cinema juntos. Te quero bem.