20.1.10

Platão

- É uma coruja?
- É, olha como a penugem é macia!
- Onde cê achou ela?
- O Porfírio, porteiro aí da frente que achou, parece que ela tá com a asa machucada, ele não tem como cuidar, pediu pra eu cuidar dela.
- Esse bicho vai emporcalhar a casa.
- Deixa de ser besta, ninguém ou bicho nenhum consegue ser mais porco que você

***

- Cadê o Platão?
- Quem?
- Platão, a coruja, ora!
- E desde quando você sabe se a porra da coruja é macho pra chamar ela de Platão?
- Cê também num sabe. Acho que ela é macho e tem cara de Platão. Cadê?
- E eu sei? Ela é sua, o Platão. Cê que tem de dar conta dela. Deve estar na área de serviço, lá tem um canto escuro. Deve estar lá, dormindo.

***

- Quer que traga cerveja?
- Quero, e pede ao cara do açougue, o careca, pra mandar as aparas de carne que ele guardou pra mim.
- Aparas? Que aparas?
- É pro Platão... ele guarda as sobras que iam pro lixo pra eu dar pro Platão, ele adora.
- Cê tá ficando maluco com essa porra dessa coruja.

***

- Acho que isso já passou dos limites. Você só quer saber dessa porra dessa coruja.
- Pô, o Platão é legal e me segue que nem cachorro, minha mãe nunca me deixou ter cachorro.
- Aí agora, com trinta anos na fuça você me arruma uma coruja?
- Péra lá, quem trouxe ela foi você!
- Trouxe sim, era pra cuidar da porra da asa quebrada dela e soltar ela de novo!
- As janelas ficam abertas, ele não sai porque gosta daqui, ele gosta de mim, sou o dono dele.

***

- Ele ainda tem a porra da coruja?
- Não, não tem mais.
- Como assim? Ele tinha até foto com a coruja no ombro! Como fez pra ele largar do bicho?
- Comprei um ratinho branco. Coloquei na escrivaninha dele, dois minutos antes dele chegar. O bicho não teve nem chance. Quando ele entrou no quarto o ratinho ainda tava estrebuchando e o Platão com o bico todo sujo de sangue.
- E ele?
- Fresco do jeito que ele é, deu um chilique de pena do ratinho e colocou Platão pra fora, com rato moribundo e tudo. Aí fomos passar uma semana na casa da tia dele no interior, porque a porra da coruja continuava querendo entrar, gostava mesmo dele, e ele traumatizado. Agora acabou, voltou tudo ao normal, ou quase.
- Quase?
- É, sem a porra da coruja ele deu para prar de respeitar quando eu alego que tou com dor de cabeça de noite.

6.1.10

Teresa

- Vem cá... chega pra lá e me conta o que andou acontecendo?
Teresa levantou os olhos do jornal e chegou-se um pouco para o lado no banco em frente à casa para dar lugar. A amiga subia a rua, voltando o trabalho e parara para saber das novidades dela. Corria o boato na fábrica que o marido dela, após uma briga, retalhara o vestido vermelho novo dela e que o clima no número 76 da Rua das Acácias não era dos mais familiares.
- Simples, nega. Aquele traste foi no forró do Ademir e não me levou. Chegou em casa três da manhã, fedendo a pinga e a vagabunda. Fiquei quietinha na minha, nem falei nada. Nem reclamei, no dia seguinte, tava lá, de manhã. Café na mesa, pãozim na manteiga, tudo nos conformes. Mastiguei a raiva uma semana. No sábado seguinte, depois do almoço, comprei uma garrafa de Princesinha, tomei um banho, me perfumei e entrei no quarto com ele. Oito da noite ele tava dormindo, dei uma chave de perna do desgraçado que, juntando com a meia garrafa de pinga, deixou ele num desmaio que só vendo. Tomei outro banho, meti aquele vestido vermelho, colado nas ancas, pus o que sobrou da garrafa na bolsa e me mandei pro forró. Fiz que nem ele. Voltei já amanhecendo, bêba que nem uma gambá e nem fiz questão de esconder o chupão que ganhei no quengo.
- Mas e aí? Ele num falou nada não?
- Inté tentou, mas quem disse que eu deixei. Só mandei pra ele, antes que ele abrisse a boca: "Quando cê voltar no forró, quero estar do teu lado, traste, senão vai ser essa trocação de chumbo até o dia do juízo, ou acaba a palhaçada aqui ou essa história vai virar carnaval de uma vez!"
- Ê, ê, mulher, e ele?
- Meteu a viola no saco, minha filha, sentou, tomou o café. Só reclamou de eu ter secado o resto de Princesinha. Aí eu achei que ele tinha metido o galho dentro. Só sei que dei um pulo na minha irmã ali no fim da tarde, ver como ela tava. Mas não é que quando eu voltei, o safado tinha retalhado meu vestido vermelho na navalha?
- Ai meu Deus! Então era verdade!
- Ô se num era, mas nega, o sangue subiu nas ventas, abri o armário, tirei as roupas dele tudo de lá de dentro, não esqueci nem a camisa do Botafogo, piquei tudo que parecia enchimento de almofada e meti numa mala, quando ele chegou do futebol, me achou de cabo de vassoura numa mão e a mala na outra. Joguei a mala na frente do traste e lembrei a ele que a dona do barraco aqui ainda sou eu, que ele veio de visita e resolveu que debaixo de meu teto e no meio das minhas pernas é que era bom de morar e foi ficando. Pus ele de cachorro pra baixo e disse que era pra ele tomar tenênça na vida e que eu que mandava, agora da porta pra dentro e da porta pra fora.
- Ai, ai, ai, Teresa, mas e ele? Ficou quieto?
- Minha filha, e aquilo é homem de ficar quieto? Partiu pra cima de mim! Tive de pranchar o cabo de vassoura na cabeça dele com tanta força que até quebrou! Só sei que o bicho caiu no chão gemendo e resmungando...
- Nossa, Teresa, que coisa feia!
- E o pior nem foi isso... o pior é que ele pediu desculpas, emprestou uma muda de roupa no vizinho e continua lá em casa.

5.1.10

Elocubrações

Ele havia dito que era só uma chuveirada. Para tirar o suor do corpo antes de irem ao aniversário de um amigo. Ela viera de casa, ele acabara de sair do trabalho, tinha esse direito. Ela ficou olhando o apartamento dele enquanto ele estava no banheiro. Um quitinete que era do tamanho senão menor do que o quarto dela. Ele morava sozinho, ela ainda vivia com os pais, casa em condomínio de luxo, com seguranças e circuito de TV. Ele vivia num prédio abarrotado de cubículos, um verdadeiro cortiço.

A mobília era espartana. Uma mesa com três cadeiras, uma geladeira. Sobre a bancada de pia que fazia as vezes de cozinha, um microondas. Um pequeno armário de fórmica e uma escrivaninha com um laptop por cima. Um sofá cama e uma prateleira com livros. Ela se aproximou para olhar. Livros velhos, ensebados, desses comprados em camelôs de rua. Bukowski, Garcia Marquez, Hemingway. Passou os dedos pelos títulos.

Sentou-se no sofá, era simples, mas confortável. Ficou imaginando o contraste entre eles. Ela era uma filhinha de papai, com dinheiro, influência e roupas de grife. Ele não tinha nada. Seu salário devia ser menor que a mesada dela, e ele ainda pagava aluguel e a faculdade. Mas ele tinha uma liberdade, uma independência que ela nem imaginava ter. Saber que tudo o que possuía era condicionado ao dinheiro dos pais e ter de dever responsabilidade a eles por isso a irritava. Ele não, ele não devia satisfações a ninguém. Podia, por exemplo, levar quem quisesse em casa sem avisar, e quando bem entendesse.

Quando pensou em quantas mulheres ele já teria levado ali, levantou-se num pulo do sofá, imaginando quantos fluidos haviam sido trocados naquele móvel onde ele dormia. E onde deviam ter dormido todas as suas conquistas. Recuou, num misto de nojo e ciúme. Ele era um cretino, nem duas semanas saindo juntos e já a levava ali, o antro em que ele havia deitado com tantas outras antes dela. Ficou vendo, angustiada, em quais cantos do minúsculo apartamento ela já teria possuído as namoradas anteriores.

Lembrou-se da loira da faculdade que passeava com ele pelos corredores da universidade, exibindo-o, ela deveria ter tido vários orgasmos naquele sofá infecto. E ele cantava no chuveiro. Cretino! Fazia aquilo só para esfregar em seu nariz as conquistas anteriores! E a mulata? Aquela que parecia passista de escola de samba, que era caso dele antes dela? Tinha certeza que ela fora dele sobre a mesa em que agora estava sua bolsa importada. Puxou-a da mesa e apertou-a contra o peito, como se a protegesse de um possível contágio.

Ele continuava cantando no chuveiro, alheio a seus pensamentos. Era realmente um canalha, fizera tudo de caso pensado, para despertar nela aqueles sentimentos, aquele ciúme. O que ele queria com aquilo? Lembrá-la de todas as mulheres que teve antes dela? Ele era um canalha, um pervertido, um sacana! Mas ela não ia deixar barato. Tirou o vestido pela cabeça e meteu a mão na maçaneta do banheiro. O safado havia deixado a porta aberta, era tudo um plano! Entrou no chuveiro ainda de calcinha, sutiã e sapatos caros, colando sua boca na dele antes que ele pudesse sequer perguntar o que ela queria. Ele podia ter tido as outras naquela casa, mas era dela o cheiro que iria ficar na pele dele quando saíssem!

4.1.10

Ressaca

Abriu os olhos. O gosto amargo na boca chegou primeiro, logo em seguida veio a dor de cabeça. Deixou-se cair novamente na cama, o mais suavemente que pôde. Torou a fechar os olhos, tentando lembrar-se da noite anterior. O sol que invadia o quarto, sem dar confiança para as cortinas puída, dizia-lhe que já era tarde, bem tarde. Ainda bem que não trabalharia aquele dia, nem nos próximos. Respitou fundo e fez nova tentativa de se levantar da cama. Segurou as pontas quando a tontura o atacou. Apoiou-se na parede e arrastou-se até o banheiro.

A figura que o encarava no espelho não era das mais apresentáveis. As olheiras fundas, de um tom esverdeado, deixavam clara a vida de devassidão que ele vinha levando nos últimos tempos. Lavou o rosto e escovou os dentes duas vezes, tentando minimizar o gosto ruim. Cogitou a hipótese de tomar um banho, desistiu quando lembrou que o chuveiro estava queimado. Ainda só de cuecas foi cambaleando até a cozinha.

A casa era o cenário de uma terra devastada. Cinzeiros cheios, latas de cerveja e garrafas de todos os tipos estava espalhadas pelos cômodos. Em cima de mesas, embaixo das cadeiras. Sobre o sofá, uma moça cujo nome ele não lembrava roncava, abraçada a uma garrafa vazia de vodca. Quase escorregou numa calcinha rosa no corredor que levava à cozinha. Olhou para trás, confirmando a procedência e chutou-a para um canto.

Abriu a geladeira. Para sua surpresa, ainda restavam algumas latas de cerveja. Pegou uma e descobriu um celular atrás das latas. Era o seu, e funcionava, apesar de estar gelado. A cerveja gelada melhorou um pouco o gosto ruim da boca. Resolveu conferir se havia algum recado no telefone, ainda sem entender como o mesmo tinha ido parar dentro do refrigerador. Não havia mensagem alguma, melhor assim. Procurou o telefone da faxineira, ela atendeu na segunda tentativa e disse que iria na parte da tarde. Eram onze da manhã, daí a pouco ela estaria arrumando a bagunça que imperava ali há alguns dias.

Resolveu voltar ao quarto. A menina ainda dormia abraçada à garrafa, mas não roncava mais. O laptop continuava ligado e funcionando sobre a escrivaninha.Por sorte, não havia entornado bebida nele. Conferiu novamente a conta bancária. O valor recebido com a venda do imóvel que recebera de herança ainda estava quase todo lá, apesar dos esforços em dilapidá-lo nos últimos dias. A cabeça latejando não impediu que ele fizesse novamente as contas. O dinheiro permitiria que ele ficasse pelo menos um ano e meio sem trabalhar. Deu uma risada que terminou em arroto e resolveu acordar a menina da sala. Tinha de perguntar-lhe o nome e aproveitar as duas horas que ainda tinha até a chegada da faxineira.