- Boa noite... uma cerveja...
A moça da barraca listou três ou
quatro marcas enquanto abria o freezer e ele escolheu a última, de nome
mais fácil. Ela pegou a lata e estendeu para ele, dizendo o preço tão
mecanicamente quanto fazia os movimentos. Quando ele pegou a bebida, seu
indicador bateu levemente duas vezes nos dedos dela, fazendo com que os
olhos deles se cruzassem:
- Quando tempo, hein?
Ela soltou a latinha e abriu a boca, os
olhos arregalados, como que tentando remontar a figura dele no cérebro.
Tantos anos depois e ele continuava muito parecido. As têmporas
começavam a se salpicar de branco e a pele estava esticada sobre uma
camada mais grossa de gordura mas, no geral, ele mantinha a mesma
fisionomia.
- Nossa... quase não te reconheci... tem tempo mesmo... dez anos?
- Onze, doze, por aí...
- Você vinha aqui quase todo dia...
-
Segundas, quartas e sextas. Dias em que eu trabalhava à noite. Não
venho desde que mudei de emprego. Arrumei um bico por aqui, acabei
ficando até mais tarde. Valeu a pena... você continua a mesma.
- E você continua gentil - ela desviou o olhar, olhando para o chão e
sorriu, meio sem graça. De havaianas, calças jeans, pochete e uma
camiseta justa que deixava parte da barriga de fora, ela continuava
muito bonita, mesmo com a cintura e o quadril um pouco mais roliços de
quando eles se conheceram.
- E sua mãe e irmãs?
- A mãe agora não trabalha mais... andou
meio doente, acabou que convencemos ela a ficar em casa. A Diana, a
mais velha, lembra dela? A que quase nunca vinha pra cá? Ela teve um
filho e trabalha na cidade, aí a mãe toma conta dele. Ela mora nos
fundos da nossa casa. A Denise saiu pouco antes de você chegar, eu e ela
continuamos com a barraca, não é grande coisa, mas dá pra viver - Ela
tirou um dos pés do chinelo e ficou brincando com o dedo na poeira do
chão. A madrugada já ia pela metade e estavam quase sozinhos entre as
barraquinhas de comida e bebida que se amontoavam atrás do terminal
rodoviário daquele subúrbio. Terça-feira e a maior parte delas estava
fechada. A da garota era uma das poucas que ficava aberta até quase
amanhecer.
Ele deu um gole na cerveja e sentou-se num banquinho de plástico
encardido. Ela continuava calada e o silêncio começava a ficar
constrangedor. Ela sentou-se em outro banco, em frente à ele e, sem
olhá-lo, quebrou o gelo.
- Acho que quase senti sua falta.
- Eu também... mas não é hora pra falarmos disso, não acha? - Suspirou, desesperançado - Me fale de você, da Denise... Casaram?
- Ela continua casada, tem uns dois anos. Ele não é grande coisa, mas não complica também. Querem ter um filho ano que vem.
- E você?
- Juntei e larguei. Por um ano e meio e dois tapas.
Ainda me pergunto como fui burra o suficiente pra esperar ele levantar a
mão duas vezes pra mim. Na primeira, eu desculpei, na segunda, coloquei
ele pra fora. Melhor sozinha. Quando esfria é uma merda. Mas é melhor
ficar sem ninguém que ficar apanhando... e você? Casou?
- Sim... três anos mês que vem, dia nove.
- E como tá? Gostando da vida de casado?
Outro gole e ele respirou fundo antes de responder - Dias bons, dias ruins... como tudo na vida, né?
- Filhos?
- Ela não quer. Tudo bem, descobri que sou pai de uma garotinha, com
uma ex-namorada... ela só me contou agora. Tá com seis anos e é uma
graça, Mas mora Em Santa Catarina com a mãe. Só vou lá no aniversário
dela. Ainda bem que a mulher lá não encrenca comigo.
- E tem como encrencar com você? Lembro que você era o único com
quem a gente realmente - ela frisou o "realmente" - gostava de
conversar. Você não era como os outros, você respeitava a gente - deu
uma pausa e olhou para o esmalte descascado das unhas dos pés -
respeitava até demais...
- E não era pra respeitar não? - Ele deu uma risada divertida, mudou
de posição, sentando-se na pontinha do banco, de modo a conseguir tocar
os joelhos dela com a ponta dos dedos - Eu sempre deixei claro o que eu
queria, não foi?
- Eu sei... eu só me arrependo de ter agido daquele jeito. Foi por
causa da Denise, você sabe, né? - deixou a frase no ar e ele demorou um
pouco a retrucar.
- Sim... também sei.. mas não dava... ia acabar complicando. Eu não ia conseguir. E aí seria pior pra todo mundo, não concorda?
- É. A merda é que eu achei que fosse pra ser ela, e não eu... eu
tinha todo mundo correndo atrás de mim... mesmo aqui, nesse lugarzinho
miserável. Ela só tinha a você.
- Feio dizer isso... mas ela
acreditava ter a mim... mas eu não era dela... gostei de ter feito o que
fiz, mas hoje não faria novamente. Ela não entendeu... e isso acabou
bagunçando tudo... e bagunçaria mais ainda se eu não tivesse mudado de
emprego. Deus às vezes resolve tudo pra gente...
- Acabou que ela seguiu em frente, tá lá... com os problemas dela,
mas tá lá... eu continuo aqui. O tempo passou pra você, pra ela, pra
Diana, minha mãe. Pra mim não. Já são quinze anos aqui, fedendo a
gordura e cerveja e só.
Ele sentiu toda a amargura da voz dela, mas não havia o que ser
feito. Não tanto tempo depois. Por mais tentadora que fosse a situação,
ele não ia mexer em feridas que estavam cicatrizadas. Acabou com a
cerveja e arremessou-a com maestria em uma lixeira a três metros de
distância. Olhou o relógio, levantou-se e puxou algumas moedas do bolso.
- Preciso ir. Meu ônibus deve sair ali do outro lado em dez minutos. Desculpe - estendeu o dinheiro - Já tá trocado
- Se desculpe não, é a vida. E essa foi por conta da casa, por conta do que a gente teve... tem... sei lá...
- Obrigado - guardou as moedas - a gente se vê por aí... mande um
abraço pra elas... - aproximou-se e, num rompante, beijou-lhe a testa,
levemente.
Ela permaneceu imóvel e ele deu meia volta. Já tinha
dado alguns passos quando ouviu-a atrás de si - Vai voltar um dia? Nem
que seja só pra conversar? - a voz dela era um fiapo. Ele parou,
respirou fundo e demorou um pouco para responder, como que buscando a
palavra correta, o jeito certo de colocar um termo decente naquele
diálogo.
Virou-se um pouco, o suficiente para olhar para ela e, piscando o olho:
-
Toda terça, pelo menos nos próximos três meses... Tempo suficiente pra
gente arriscar um palpite sobre como a vida vai caminhar, né?
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