18.8.12

Madrugada de terça

- Boa noite... uma cerveja...

A moça da barraca listou três ou quatro marcas enquanto abria o freezer e ele escolheu a última, de nome mais fácil. Ela pegou a lata e estendeu para ele, dizendo o preço tão mecanicamente quanto fazia os movimentos. Quando ele pegou a bebida, seu indicador bateu levemente duas vezes nos dedos dela, fazendo com que os olhos deles se cruzassem:

- Quando tempo, hein?

Ela soltou a latinha e abriu a boca, os olhos arregalados, como que tentando remontar a figura dele no cérebro. Tantos anos depois e ele continuava muito parecido. As têmporas começavam a se salpicar de branco e a pele estava esticada sobre uma camada mais grossa de gordura mas, no geral, ele mantinha a mesma fisionomia.

- Nossa... quase não te reconheci... tem tempo mesmo... dez anos?

- Onze, doze, por aí...

- Você vinha aqui quase todo dia...

- Segundas, quartas e sextas. Dias em que eu trabalhava à noite. Não venho desde que mudei de emprego. Arrumei um bico por aqui, acabei ficando até mais tarde. Valeu a pena... você continua a mesma.

- E você continua gentil - ela desviou o olhar, olhando para o chão e sorriu, meio sem graça. De havaianas, calças jeans, pochete e uma camiseta justa que deixava parte da barriga de fora, ela continuava muito bonita, mesmo com a cintura e o quadril um pouco mais roliços de quando eles se conheceram.

- E sua mãe e irmãs?

- A mãe agora não trabalha mais... andou meio doente, acabou que convencemos ela a ficar em casa. A Diana, a mais velha, lembra dela? A que quase nunca vinha pra cá? Ela teve um filho e trabalha na cidade, aí a mãe toma conta dele. Ela mora nos fundos da nossa casa. A Denise saiu pouco antes de você chegar, eu e ela continuamos com a barraca, não é grande coisa, mas dá pra viver - Ela tirou um dos pés do chinelo e ficou brincando com o dedo na poeira do chão. A madrugada já ia pela metade e estavam quase sozinhos entre as barraquinhas de comida e bebida que se amontoavam atrás do terminal rodoviário daquele subúrbio. Terça-feira e a maior parte delas estava fechada. A da garota era uma das poucas que ficava aberta até quase amanhecer.

Ele deu um gole na cerveja e sentou-se num banquinho de plástico encardido. Ela continuava calada e o silêncio começava a ficar constrangedor. Ela sentou-se em outro banco, em frente à ele e, sem olhá-lo, quebrou o gelo.

- Acho que quase senti sua falta.

- Eu também... mas não é hora pra falarmos disso, não acha? - Suspirou, desesperançado -  Me fale de você, da Denise... Casaram?

- Ela continua casada, tem uns dois anos. Ele não é grande coisa, mas não complica também. Querem ter um filho ano que vem.

- E você?

- Juntei e larguei. Por um ano e meio e dois tapas. Ainda me pergunto como fui burra o suficiente pra esperar ele levantar a mão duas vezes pra mim. Na primeira, eu desculpei, na segunda, coloquei ele pra fora. Melhor sozinha. Quando esfria é uma merda. Mas é melhor ficar sem ninguém que ficar apanhando... e você? Casou?

- Sim... três anos mês que vem, dia nove.

- E como tá? Gostando da vida de casado?

Outro gole e ele respirou fundo antes de responder - Dias bons, dias ruins... como tudo na vida, né?

- Filhos?

- Ela não quer. Tudo bem, descobri que sou pai de uma garotinha, com uma ex-namorada... ela só me contou agora. Tá com seis anos e é uma graça, Mas mora Em Santa Catarina com a mãe. Só vou lá no aniversário dela. Ainda bem que a mulher lá não encrenca comigo.

- E tem como encrencar com você? Lembro que você era o único com quem a gente realmente - ela frisou o "realmente" - gostava de conversar. Você não era como os outros, você respeitava a gente - deu uma pausa e olhou para o esmalte descascado das unhas dos pés - respeitava até demais...

- E não era pra respeitar não? - Ele deu uma risada divertida, mudou de posição, sentando-se na pontinha do banco, de modo a conseguir tocar os joelhos dela com a ponta dos dedos - Eu sempre deixei claro o que eu queria, não foi?

- Eu sei... eu só me arrependo de ter agido daquele jeito. Foi por causa da Denise, você sabe, né? - deixou a frase no ar e ele demorou um pouco a retrucar.

- Sim... também sei.. mas não dava... ia acabar complicando. Eu não ia conseguir. E aí seria pior pra todo mundo, não concorda?

- É. A merda é que eu achei que fosse pra ser ela, e não eu... eu tinha todo mundo correndo atrás de mim... mesmo aqui, nesse lugarzinho miserável. Ela só tinha a você.

- Feio dizer isso... mas ela acreditava ter a mim... mas eu não era dela... gostei de ter feito o que fiz, mas hoje não faria novamente. Ela não entendeu... e isso acabou bagunçando tudo... e bagunçaria mais ainda se eu não tivesse mudado de emprego. Deus às vezes resolve tudo pra gente...

- Acabou que ela seguiu em frente, tá lá... com os problemas dela, mas tá lá... eu continuo aqui. O tempo passou pra você, pra ela, pra Diana, minha mãe. Pra mim não. Já são quinze anos aqui, fedendo a gordura e cerveja e só.

Ele sentiu toda a amargura da voz dela, mas não havia o que ser feito. Não tanto tempo depois. Por mais tentadora que fosse a situação, ele não ia mexer em feridas que estavam cicatrizadas. Acabou com a cerveja e arremessou-a com maestria em uma lixeira a três metros de distância. Olhou o relógio, levantou-se e puxou algumas moedas do bolso.

- Preciso ir. Meu ônibus deve sair ali do outro lado em dez minutos. Desculpe - estendeu o dinheiro - Já tá trocado

- Se desculpe não, é a vida. E essa foi por conta da casa, por conta do que a gente teve... tem... sei lá...

- Obrigado - guardou as moedas - a gente se vê por aí... mande um abraço pra elas... - aproximou-se e, num rompante, beijou-lhe a testa, levemente.

Ela permaneceu imóvel e ele deu meia volta. Já tinha dado alguns passos quando ouviu-a atrás de si - Vai voltar um dia? Nem que seja só pra conversar? - a voz dela era um fiapo. Ele parou, respirou fundo e demorou um pouco para responder, como que buscando a palavra correta, o jeito certo de colocar um termo decente naquele diálogo.

Virou-se um pouco, o suficiente para olhar para ela e, piscando o olho:

- Toda terça, pelo menos nos próximos três meses... Tempo suficiente pra gente arriscar um palpite sobre como a vida vai caminhar, né?

Nenhum comentário: