19.2.10

Fumaça e trumpete

A porta fechou-se atrás dela sem ruído. A fumaça do ambiente abraçou-a afetuosamente, embriagando-a com um hálito doce e perverso. De longe, muito longe, um som chegou-lhe aos ouvidos. Procurou o balcão e um copo cheio de gelo, com uma bebida que lhe queimava as entranhas. Apoiou os cotovelos sobre a madeira ensebada e acendeu um cigarro. Queria contribuir com a decoração do ambiente. O som era cada vez mais pungente, quase choroso e ela começou a sentir um aperto por baixo do miúdo seio esquerdo. Uma lágrima umedeceu-lhe os olhos, parte pela dor da música, parte pela fumaça acre do salão. A batida vigorosa de uma caixa trouxe-a de novo ao mundo. Apertou os olhos no exato momento que o homem do trumpete tirava a surdina e o suíngue da banda parecia socar a fumaça azulada nas paredes. Foi tomada por uma vontade incontrolável de dançar, mas resignou-se a bater com a ponta das sandálias no apoio de latão para os pés.

Olhou para o relógio enevoado por cima da prateleira de bebidas. Já era hora. Virou-se em direção à porta, esperando a fumaça se abrir e dar passagem a quem ela sabia que não demoraria a chegar. Realmente não demorou. Ela ainda estava na primeira metade da bebida marrom e cheia de gelo quando ele entrou. O sorriso amplo, de dentes brancos e grandes, os gestos largos, o rosto moreno e brilhante. De cada lado, uma moça de vestido curto e sorrisos de notas de cinqüenta.

Levantou-se, deixando uma cédula sob o copo mal bebido e furou a fumaça em direção ao trio. Viu o sorriso murchar no rosto do meio quando se aproximou. Os olhos dele piscaram uma, duas, três vezes. E quando o trumpete atacava um solo em mi bemol, um direto de esquerda encontrou o nariz abaixo daqueles olhos que piscavam de fumaça e surpresa. Com o homem caído na névoa e o grito das acompanhantes se misturando aos berros do trumpete e à fumaça azeda, ela saiu do bar, embalada pelo solo estridente do trumpetista, mais leve que a fumaça azulada que ela deixava pra trás.

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