18.3.10

Um casal de urubus

Sentiu a pele queimando e a luz fez suas retinas doerem assim que abriu os olhos. Deitado no chão duro, tentou descobrir onde estava, só para perceber que o lado esquerdo de seu corpo estava totalmente paralisado. Mexeu a cabeça o máximo que pôde. Só pode notar que estava entardecendo e que havia uma árvore perto dele, com dois urubus empoleirados num galho seco. A cabeça também doía e ele tentou lembrar como viera parar ali, deitado, paralisado, a boca seca e os olhos doloridos.

Lembrava do embarque no navio que o levou, junto com vários camaradas para o sul. O desembarque e o trajeto até a frente de batalha, a cumplicidade na caserna, as escaramuças contra o inimigo e a diversão no bordel que acompanhava a tropa. A imagem da noiva em seu vestido azul, acenando para ele no porto se confundia com a morena de vestido vermelho sobre quem ele se deitava nas vésperas de batalhas.

Em sua cabeça, os gemidos da china se confundiam com os gritos da soldadesca. Lembrou de estar, junto com mais alguns soldados de seu regimento de cavalaria perseguindo inimigos que fugiam. Lembrava da cara do primeiro paraguaio que passou pelo fio da espada. De como os amigos riam e praguejavam enquanto perseguiam os pobres diabos que fugiam pela campina.

Piscou os olhos, ao seu redor, apenas o ruído do vento nas folhas da árvore. Os dois urubus olhavam um para o outro, indiferentes à sua presença ali no chão. Um começou a alisar as penas do outro com o bico, uma estranha amostra de afeto, que o lembrou da noiva acariciando seus cabelos após a missa de domingo, antes do almoço no sobrado da família.

Em sua cabeça, chegou a imagem de dois paraguaios correndo pra um lado, se separando do grupo principal. E ele guinando o alazão em direção a eles, espada em riste, gritando, sangue nos olhos. Alcançou o primeiro paraguaio e golpeou-lhe o pescoço com o sabre. Guinou o cavalo para o segundo, para terminar o serviço e deparou-se com um orifício negro apontado para si. O paraguaio sobrevivente tinha uma pistola e apontava pra ele. Sentiu uma ardência do lado esquerdo, mas mesmo assim conseguiu acertar o ombro do inimigo, derrubando-o, a espada presa da carne do outro.

Lembrava-se ainda de ter continuado no lombo do cavalo, abraçado ao pescoço do animal, segurando um lenço sobre o ferimento. A imagem da noiva vinha e voltava à sua mente, agora ela estava de joelhos, rezando uma novena na igreja matriz. Tentou cuspir, mas a boca estava seca demais. Nenhum som. Nem de tiros, nem de gritos, gemidos, cornetas. O cavalo devia ter levado-o para bem longe. Teve vontade de chorar, mas controlou-se. Não conseguia mexer-se e sentia-se cada vez mais fraco.

No galho seco, os dois urubus agora pareciam notar sua presença. Haviam parado de alisar as penas um do outro e olhavam fixamente para ele. Fez mais um esforço para se levantar, não conseguiu. Agora a perna direita já não respondia mais, o braço direito cada vez mais pesado. Tentou pegar uma pedra de jogar nos urubus. Não teve força.

Um dos pássaros voltou a alisar as penas do outro com o bico, e ele parecia ver a silhueta da noiva atrás de um deles, e atrás do outro, o sorriso da china ao receber as patacas de prata após o coito. Suspirou e fechou os olhos, cada vez mais cansado, enquanto os urubus continuavam a se alisar, donos de todo o tempo do mundo.

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