14.10.09

A vida começa aos quarenta

Juro que serei um sujeito sério. Até os quarenta.
Até lá serei o exemplo do pai, do marido, do funcionário padrão. Responderei com sorrisos a todas as agruras que a vida me impôr. Construirei uma vida e uma reputação inabalável, terei um patrimônio, se não invejável, ao menos confortável. Até os quarenta.
Aí então, às vesperas do meu quadragésimo aniversário, farei vultosos seguros de vida, onde beneficiarei todos os meus, até então, poucos dependentes. Prepararei cuidadosamente a vida futura daqueles que carregarem em si minha semente. Aí acreditarei no dito que proclama que a vida começa aos quarenta.
Deixarei para trás a família, os filhos. A mulher que me cerceava o chope com os amigos, os parentes que viviam a me pedir favor. Os falsos amigos do escritório. Farei todos comerem a poeira de meu verdadeiro eu. Baterei a porta com a violência represada em quarenta anos de bom-mocismo e partirei com a fúria correspondente ao mundo.
Aí sim, de peito aberto, com o nome de Quincas Berro d'Àgua tatuado no braço, à guisa de patuá, desbravarei o mundo. O corpo, poupado por tantos anos, responderá à altura. Beberei todo o álcool que me foi negado durante minha vida. Provarei de todas as mulheres que cruzarem meu caminho, fazendo o possível para trasmitir à humanidade, através delas, meu sangue ruim. Não farei distinção entre noite e dia, e tal qual meus heróis ébrios, farei minha epopéia rumo à degragação.
Após essa miríade de orgias, um dia, meu coração irá falhar.

Óbvio, logo ele, tão encarcerado por tantos anos, coitado, quando se viu livre da gaiola que lhe foi imposta por tantas convenções sociais, subirá tão alto que o oxigênio irá lhe faltar e então, explodirá num infarto fulminante, deixando pra trás o gosto de uns poucos anos vividos ao máximo, o gran finale magnifíco para uma vida que fez tanto em tão pouco.
Através das últimas transações financeiras feitas quando eu ainda era um homem sério, deixarei o legado de alguma posse aos herdeiros de meu sangue podre. Para que eles, assim como eu, deixem dissimulada minha má semente sob o verniz do falso bom caráter que um dia fui.
Deixarei assim, ao futuro, alguns anos que refocilaram na lama com quatro décadas de cinismo e uma última boa ação que me redimiu. O último ato de um cínico. Que isso sirva de mau exemplo a todos que comigo partilharam o pão, o sal e a boemia.

Um comentário:

Camila disse...

Você me inspirou... com algumas alterações, eu quero isso e um pouco mais!
Beijo, amigo!