21.12.10

Final de Campeonato

- Dimbra! Dimbra!

Ele ouvia os gritos do treinador. Parecia que o Leleco estava do seu lado, correndo, bufando e berrando. Mandando driblar o último defensor adversário antes do gol vazio, escancarado, uma enorme boca de madeira, pedindo a bola, gulosa. Olhou para frente. Apenas um oponente entre ele e a glória. Betinho, dois anos mais velho, morador da rua de baixo. Grandalhão, briguento, com fama de zagueiro violento e sem limites. O outro vinha em sua direção, pesado, suado, o rosto vermelho, cansado. Era final de jogo, provavelmente o último lance da final da liga estudantil da cidade. Colégio contra colégio, pobres contra ricos, empregados contra patrões. Todos ali, nas arquibancadas de alvenaria do campinho do Aliança Esporte Clube, o único com piscina do município, orgulho dos bacanas de Monte Verde e objeto de inveja dos menos favorecidos, que tinham o campo de terra batida e as mesas de víspora do Clube Operário como opção de lazer. Ali estava ele, mirrado, amarelento, desnutrido, contra um garoto com o dobro do tamanho, mas ambos tinham as mesmas condições ali no campo e com uma leve vantagem para o Davi de chuteiras remendadas contra o Golias de rosto vermelho. Um drible, um gol. E a glória

- Dimbra! Dimbra!

O técnico devia estar com as veias do pescoço da grossura de um dedo, de tanto berrar. No minuto anterior, jogo empatado, o goleiro do time do Colégio Santo Amaro, freqüentado pelos filho das melhores famílias, tentara sair jogando, já nos descontos. Tomara a bola do goleiro, dera um drible que deixou o arqueiro sentado e agora partia contra o gol vazio, tendo apenas o zagueiro Betinho diante de si. Passou a perna por cima da bola, como fizera tantas vezes, jogou o corpo de um lado para o outro, não dando ao inimigo a chance de imaginar para onde ia. Driblaria Betinho, entraria com bola e tudo dentro do gol e sairia correndo para abraçar os colegas.

- Dimbra! Dimbra!

Conseguia ouvir a voz dos pais junto com a do técnico, sabia que eles estavam ali, berrando junto, torcendo. Aquele gol redimiria todas as surras que levara quando o futebol colocara o estudo pra escanteio, Seria um gol para apagar cada nota vermelha no boletim, cada zanga da mãe, cada correiada do pai, Ali eles veriam que ele era um craque da bola. Um Pelé de calças curtas, tão genial como aquele que eles ouviam no rádio. Ele driblaria o zagueiro violento, deixaria-o de bunda no chão como o goleiro metido a atacantes, esfregaria na cara de todos aqueles moleques criados a leite de pêra quem ele era, porque ele era sempre o primeiro a ser escolhido nas peladas de sábado.

- Dimbra! Dimbra!

Traçou o melhor rumo até o gol. As meninas gritavam também, dando pulinhos, ele nem olhava para elas, mas sabiam que todas estavam lá, olhando pra ele, o foco de todas as atenções. Até Danuza, filha do Leleco da padaria estava ali, ela e o rostinho coalhado de sardas com quem ele sonhava todo dia. Ele faria o gol e tinha a certeza de que ela viria dar-lhe um beijo pela vitória. Aí ele se encheria de coragem e a convidaria para ir com ele ao matinê de domingo no Cine Tupã, ver uma fita e ficar de mãos dadas na sala escura. Depois daquele gol, ela e todas as meninas da Grupo Escolar iam querer ir ao cinema com ele.

- Dimbra! Dimbra!

Agora era a hora, o marcador estava perto, conseguia ver os olhos injetados do adversário. Tornou a passar o pé sobre a bola, fez que ia pela direita e se jogou para a esquerda, para voltar imediatamente para a direita em seguida. O marcador previu o primeiro drible, mas não o segundo. A bola passou pelo zagueiro, mansa, obediente. O atacante abriu o sorriso, sentindo o vento no rosto, nada entre ele e a vitória. A glória suprema do gol no último minuto. A boca do gol, pedindo a bola que ia colada a seus pés, dengosa, macia. O grito da torcida, já se abraçando, antevendo o triunfo, o primeiro campeonato do Grupo Escolar Professor Demóstenes Barreto em todo a história da liga estudantil. Apenas alguns metros, quatro ou cinco passos até a redenção... e tudo ficou escuro.

No dia seguinte, quando acordou, soube que o zagueiro o atingira com um soco por trás e ele desmaiara antes de chegar ao gol. A torcida invadiu o campo, numa briga generalizada que só acabou com a chegada do destacamento policial. O juiz terminara a partida e a taça ficara com o adversário, que jogava pelo empate. Ele ficara desacordado resto do dia e a noite toda, o médico disse que tinha tido uma concussão, mas que isso não iria trazer nenhum problema. Como consolo, só o bilhete da Eliete, filha da vizinha, querendo saber se ele queria convidá-la pra ir ver uma fita no Cine Tupã, na sessão das quatro.

8.11.10

No bar

Ela parou na calçada do outro lado da rua, em frente ao bar. O mar às costas, o sol já ameaçando se pôr. Vinte e poucos anos. Tênis, jeans e camisa de uniforme pólo branca, a marca da empresa sobre o seio esquerdo. Era miúda. Mignon, mas com curvas estrategicamente bem colocadas. A pele clara, os cabelos castanho escuros presos por uma caneta num coque no alto da cabeça. Usava maquiagem leve, a sombra dos olhos era verde, combinando com o logo na blusa. A boca era suficentemente carnuda e vermelha pra dispensar o uso do batom.

Ela atravessou a rua saltitante e entrou no bar. Foi até uma mesa onde um homem sozinho tomava um chope e cumprimentou-o com um beijo nos lábios, depois de soltar os cabelos balançando a cabeça como só as mulheres que se sabem bonitas conseguem fazer. Ele retribuiu mecanicamente ao carinho e ela sentou-se na cadeira à frente dele, os olhos inquisidores fixos no acompanhante. Ele pronunciou alguma coisa que só ela ouviu. Algo suficientemente duro para que os olhos dela se enchessem de lágrimas, quase transbordando e borrando a maquiagem. Ela levou a mão na boca, tentando balbuciar algo, mas a voz não saía.

Finalmente ela se libertou de seu torpor e a mão atravessou a mesa, estalando no rosto do homem. Os fregueses do bar voltaram-se para o casal, na curiosidade que toda cena de ciúme provoca. Pessoas cochichavam entre si enquanto ela descompunha o ex-amante, que, impassível, continuava sentado, olhos baixos, bebericando de leve o chope que já ia pela metade.

Enfim ela se cansou, pegou a bolsa que estava no espaldar da cadeira e saiu do bar, rumo à orla. Deixei uma nota de vinte sob o copo, o suficiente para cobrir os chopes e a porção de salaminho quase intacta. Levantei-me e fiz um sinal para o garçom, que retribuiu com um sorriso cúmplice, e saí o mais naturalmente possível do bar. Com um pouco de sorte eu a alcançaria antes da próxima quadra e arriscaria proporcionar-lhe o consolo que toda mulher abandonada merece.

10.10.10

Sobremesa

De início, ele não queria ir para a cama com ela. Mas após a insistência de uma amiga em comum e uma incrível seqüência de fins de semana chuvosos, ele aceitara visitá-la.

Subindo as escadas do prédio antigo onde ela morava, sentiu-se meio michê. Eles estudavam juntos, e ele sabia que ela era louca por ele e ele a esnobava. Não que ele fosse grande coisa, mas, mesmo assim, ele a esnobava. Ou melhor, esnobara, pois agora subia os degraus até o segundo andar e apertava a campainha do 202. Uma visita inocente, diriam, caso perguntados. No frigir dos ovos, sexo casual e descompromissado.

Ele apertou a campainha uma, duas, três vezes. Só então ela abriu a porta. Ofegante, ainda ajeitando a blusa de tecido leve, cor de salmão. Ela era muito branca, os cabelos de um castanho acobreado presos num coque no alto da cabeça. Os óculos de aros e hastes grossas, como era moda na época, ao invés de lhe darem um ar moderno, faziam-na deslocada, boboca. Ele beijou-a nas duas faces. Protocolar. Inócuo. Ela sorriu, tinha dentes miúdos, arredondados, feito canjica. A boca era redonda, muito vermelha. como cerejas ao marasquino.

Ela mostrou a casa, um quarto-e-sala pequeno, confortável e... insípido. Ela nem era feia, tinha belos traços, mas era apagada, desinteressante, sem-sal. Ele sentou-se no sofá, ela à sua frente, despejando amenidades. O tempo, um filme, problemas do curso. Ahhh, o curso, estudarem juntos era o motivo do platonismo dela e da visita em mais um fim de semana chuvoso.

Enquanto ela falava, ele reparou no colo dela. Ela usava sutiã de bojo. Tinha seios flácidos, caídos, murchos até, que se apoiavam desgraciosamente como maria-mole nas bandejas da lingerie.
Ela sorria e sorria, e ele não sabia mais o que fazia ali. Ele a imaginava flácida, mole, frágil como um manjar de botequim, que corre o risco de se desmanchar à primeira colherada. Lembrou-se como era difícil de se conseguir manjar de sobremesa em botequins. Pudins de leite eram a regra. Mas pudins de leite eram morenos, bem mais morenos que ela, se lhe permitiam a licença poética.

Enfim, ela se levantou e foi buscar bebida. Voltou com uma garrafa de licor e dois copinhos de cristal. O papo agora fluía melhor, ela começava a mostrar-se razoavelmente divertida e até interessante,

Quando ela levantou-se novamente, para buscar torradinhas e patê, ele notou que, fora os seios flácidos, ela até tinha um bom corpo. uma bunda bonita, redonda como bombons e, a princípio, tão apetitosa quanto. Ao voltar, ela sentou-se mais perto dele e ele reparou nos pés dela. Ela tinha pés bonitos, bem cuidados, de dedos arredondados e unhas bem feitas, pintados da cor de doce de leite.

Agora, já permitiam encostar-se, E nem haviam bebido, as primeiras doses de licor continuavam sobre a mesinha de centro, mal tinham sido provadas. E eles já riam, apertando os joelhos um do outro, com mãos gulosas e dedos sedentos.

Então ele a puxou para si, sua boca colada naqueles lábios ao marasquino. Sua língua provando a língua e os dentes de canjica dela. Ele a agarrou e foram os dois para o tapete. Então ele comeu-a, toda, por completo. Os seios de maria-mole, a pele de manjar, os dedos de doce de leite,, a bunda de bombons. Sorveu-a toda, como um desesperado num oásis. Bebeu-a até a última gota. Saciou-se. Fartou-se como se nunca tivesse se alimentado antes. Deixou-se morrer calmamente no tapete ao lado dela, feliz feito criança que se lambuza com a sobremesa.

12.9.10

Trovinha

só largo da enxada pra pegar no teu cabelo
mas essa espera me leva ao desespero

sei de tua vontade, e ela é importante
mas nosso momento está tão distante

sei que prometeu se portar como donzela
até trocarmos votos, lá no alto, na capela

o desejo me corrói, feito cupim na madeira
e esse meu jejum não está de brincadeira

pra nossa casinha, juntei certa importância
mas estou prestes a investir na tolerância

pra aplacar esse calor, que me enlouquece
enquanto decides, se me quer ou me esquece

4.9.10

Mapa

meu corpo impresso no teu
tua pele com minhas marcas
eu desenhado em você
meu mais precioso mapa

linhas que se perdem
em fios, pelos, cabelos
que morrem entredentes
em suspiros singelos

a língua que me guia
pela imensidão de teu ser
provando cada mistério
enlouquecido em te ler

meu país, meu continente
no teu corpo todo resido
meu presídio, minha ilha
meu melhor esconderijo

30.8.10

Conversa de bêbado

Ele era o bêbado. Cidades pequenas costumam ter seus estereótipos. A cidade pequena é quase um tarô. Você encontra o bêbado, o louco, o rei e por aí vai. Ele era o bêbado. Sempre sentado na mesma mesa no bar da rodoviária, antiga estação de trem. Parecia tão parte da paisagem quanto os azulejos encardidos do prédio. À sua frente, ou um copo de cachaça, se a grana era curta, ou uma cerveja, para a semana em que recebia o benefício.

Era uma quarta-feira, três da tarde. Novembro. Um dia quente e de ar parado. Até as moscas pareciam sem vontade de voar. O dono do bar tirava um cochilo atrás do balcão, o único freguês era o bêbado. Bermuda, chinelos, as pernas brancas e peludas esticadas na calçada. A camisa listrada de algodão estava toda desabotoada, deixando a barriga que estufava uma camiseta branca à mostra. A barba branca estava manchada de nicotina, assim como os dedos da mão esquerda. O copo de cachaça sobre a mesa estava pela metade e ele estava com preguiça de mais um gole. Os olhos embaciados tentavam ver algo além das manchas de óleo no calçamento, onde um cachorro dormia sobre um punhado de areia.

Um ronco cortou o silêncio da tarde e um ônibus virou a esquina. O cachorro levantou-se e veio deitar sob a cadeira do bêbado. O veículo freou bem em cima da areia onde o bicho dormia, levantando uma nuvem de poeira. O velho levou a mão ao copo, protegendo-o da poeira. O ônibus exalava um bafo quente, que aumentava o incômodo do calor da tarde. A porta abriu-se num rangido e um homem saltou. Jovem, rosto comum. Paletó de tecido claro, chapéu de lebre e uma pequena mala de couro marrom na mão. O motorista fechou a porta e arrancou novamente, produzindo nova nuvem de areia, além de uma carga de fumaça negra do escapamento.

O recém-chegado parou ao lado do bêbado, olhou para os lados. O dono do bar continuava sua soneca, um jornal cobrindo o rosto. O estranho colocou a mala no chão e pigarreou antes de falar.

- Se eu pedir uma cerveja, cê divide comigo?

O homem sentado girou um pouco o pescoço e olhou para o forasteiro. Os olhos continuavam embaciados e meio vazios, mas ele deu um sorriso de dentes amarelados.

- Só não vou é ter como retribuir a gentileza, meu amigo, só tenho o da cachacinha, e contadinho as moedas.

- Ligo não, quero companhia só, não esquento de divisão, ainda mais num lugar que não vou esquentar pouso. A cachaça daqui é boa?

- Entra aí, acorda esse preguiçoso e pede uma das que ele guarda no fundo da geladeira. e se quiser pinga, pede uma "Jão Bobo", a do barril que ele vende aí é intragável. Só mesmo pra quem não conhece mesmo, e o distinto tem cara que 'apreceia' uma de qualidade.

O moço riu e entrou no bar. Acordou o dorminhoco e voltou com duas garrafas e três copos. Dividiu a cerveja e completou o copo do velho, além de servir uma boa dose da "Jão Bobo" para si mesmo.

- Comprou a garrafa?

- E ainda pedi pra separar mais uma, caso eu goste, levo uma de lembrança daqui.

O velho deu uma gargalhada. - E até parece que aqui tem algo pra se levar de lembrança, cidadezinha perdida no meio do mundo?

O estranho deu um sorriso de lado e piscou um olho - Todo lugar tem algo pra se levar de lembrança, meu amigo, até nos mais remotos rincões do mundo, quem tem um bom olho descobre algo que valha a pena levar consigo.

- Se você diz, que parece ser moço estudado, eu não tenho nada a contestar, mas esses olhos velhos já viram muita coisa, ainda mais aqui, e não vi nada aqui que possa interessar a quem não seja daqui, e olhe lá!

Após um gole de cerveja, o moço estalou a língua, e sem olhar para os lados continuou - Eu não o desminto, meu caro. O senhor está coberto de razão, mas toda regra tem a exceção que a confirme, não é? - O velho resmungou em consentimento e ele prosseguiu - O amigo é inteligente, mais do que parece, tem muita gente aqui que acha que a cana te deixa menos esperto que elas, não é? Eu sei muito bem como é isso, mas é aí que eles erram, mas é bom. Quando menos esperam, quem não chama atenção é que faz a diferença, não acha?

O velho riu e cutucou o outro, rindo - Hehehe, isso mesmo, o mal do urubu é achar que o boi já morreu! - Os dois riram e viraram mais um copo de cerveja, arrematando com um gole na cachaça. O moço tornou a encher os copos.

- Bonito aquele carro aí em frente não é? É de quem?

- Não sei, estacionaram ele aí ontem à noite, um sujeito que não conheço, coisa estranha. Parou o carro, entrou aqui, tomou um refresco, e entrou num ônibus que parou logo em seguida e foi embora. Não entendi nada. Com um carro daqueles, quem ia ficar sacolejando nos cata-cornos daqui?

O estranho meteu a mão no bolso do paletó e puxou uma chave, levando-a aos lábios como se pedisse silêncio. Prosseguiu sussurrando.

- É pra mim, eu pedi que ele trouxesse o carro pra cá pra mim... Vim buscar uma encomenda que chega no próximo ônibus.

- Qual o quê! É feio mentir pros mais velhos, nada que vem nesse ônibus presta, acho que só galinha ainda presta pra viajar nesses cacareco que roda por aqui!

- Depende, meu amigo, tem hora que um desses pode trazer algo que valha a pena.

- Só quero ver, mas acredito em você, não sou de discordar de quem é bom de prosa e ainda me paga bebida.

Ficaram em silêncio alguns instantes, saboreando as bebidas e tentando não derreter sob o calor escaldante da tarde. Outro ronco perturbou novamente o silêncio quando outro ônibus apontou na esquina. O rapaz terminou a cerveja de seu copo e emborcou o copo, fazendo o mesmo com a cachaça. Enquanto o coletivo estacionava, ele colocou a garrafa de cachaça pela metade dentro da mala e colocou uma nota graúda sobre a mesa.

- Obrigado pela companhia, a conta está paga e a garrafa que separei é sua. Isso aqui é um agradecimento pela boa conversa e pela companhia. Beba uma à minha saúde depois.

A porta da condução se abriu e uma moça saltou, carregando uma pequena valise nas mãos. Morena, miúda e muito bonita. O vestido justo realçava suas formas e ela cumprimentou o rapaz com um beijo nos lábios. Ele a enlaçou pela cintura e pegou sua bolsa, carregando as duas sem esforço em uma só mão. Levou a mão ao chapéu num cumprimento, o bêbado retribuiu levantando o copo de cana e tombando a cabeça para frente.

O casal afastou-se abraçado e caminhou até entrar no carro estacionado do outro lado da rua. O estranho arrancou com o veículo, acenando para o velho, que entrou no botequim e pegou a garrafa paga que o forasteiro havia lhe dado. O dono do bar voltara a cochilar e nem vira o casal sair. Melhor assim, ninguém ia saber qual a encomenda que o moço viera buscar ali. Meteu a garrafa debaixo do braço e foi para casa, aquela ia ficar num lugar de destaque na sala e só ia ser aberta em ocasião especial. Afinal, não era todo dia que se ganhava um presente naquele fim de mundo.

4.8.10

Aquarela

- Eu devia ter te feito um filho enquanto podia.

- Não pensa nisso agora, só sossega e fica aí quietinho, não quero falar sobre isso. Passou. Ponto.

Ela estava deitada, uma manta cor-de-rosa a cobria até o busto. Os braços muito brancos estavam repousados sobre a barriga e os cabelos loiros espalhados pelo travesseiro emolduravam o rosto pálido. Ela era bonita, muito bonita. Uma beleza clássica, de atriz de cinema mudo, como ele sempre comentava. Agora ela estava ali deitada. Os olhos verdes fechados, uma expressão de paz e resignação no rosto. Os lábios, antes rosados, quase se confundindo com a brancura da pele.

Ele levantou-se da cadeira e foi até a janela. Do lado de fora, um sol tímido começava a secar o sereno da grama. Ela agora morava num sítio afastado, numa cidade do interior onde ninguém a conhecia. Olhou para a cama, ela dormia tranqüilamente. Resolveu dar uma volta pela casa. Viajara a noite toda, assim que recebera a notícia e chegara há poucos minutos. Ela acordara apenas para recebê-lo e falar um instante sobre a cirurgia, antes de pegar novamente no sono.

A casa era simples, mas confortável, decorada com o bom gosto que era peculiar à dona. Ele passeou pela sala. Um jogo de sofás com mantas coloridas, uma estante de livros ocupando toda a parede e um aparador com galinhas de todos os tamanhos, feitios e materiais. Pegou uma, de cerâmica, e limpou uma pequena mancha de poeira do bico do bibelô, voltando a colocá-la no lugar. Os quadros abstratos nas paredes faziam um contraponto interessante com aqueles bichinhos inanimados. Sentiu-se afundar no tapete felpudo enquanto ia até o quarto de hóspedes, que também era usado como escritório.

Ali a decoração era mais sóbria. Uma cama, mais uma estante abarrotada de livros e uma mesa antiga com um computador portátil em cima. Em uma das paredes, um desenho emoldurado lhe pareceu familiar. Aproximou-se e conferiu a assinatura. Sua ex-esposa. Engoliu em seco. Uma aquarela representando um casal na praia. Os tons estavam mais amarelados do que na época da pintura, dando ao quadro uma aura de simpática decadência. Fechou os olhos quando lembrou o dia em que o quadro fora esboçado e dos dias seguintes, em que observou as cores invadindo o papel. Sem pressa, delicadas e inexoráveis.

Saiu do quarto e foi até a cozinha. A empregada estava terminando de preparar a mesa de café. O cheiro de bolo de milho e de café recém preparado deu-lhe algum ânimo. Parou no umbral da porta. No quintal, algumas galinhas ciscavam na grama perto da pequena horta que ela mantinha como passatempo. Ela agora estava vivendo em paz, feliz. Parecia nem lembrar-se dele ou da paixão que os tinha tragado anos antes. Depois de tanto sofrimento e prazer sentidos apenas por eles dois, ela já devia ter se refeito e afastado seus demônios interiores, coisa que ele ainda não fizera.

Pegou a bandeja de desjejum que a empregada havia preparado e levou até o quarto da cunhada, ainda lembrando o dia em que os dois posaram para a irmã dela na praia.

9.7.10

Tantinho

O time do Operário Esporte Clube, de Campo Belo, nunca tinha sido grande coisa. Até Tantinho.

Tantinho era um negro alto, novo ainda, nem exército tinha servido ainda. Trabalhava como servente de pedreiro, sem brilho na ocupação. A vocação de Tantinho era o gramado. No caso, vestindo a camisa azul e branca do Operário. À primeira vista, era um desses atacantes trombadores, que usava a força física como diferencial. O detalhe era que, além de ser extremamente forte, o crioulo era fabuloso com a bola nos pés. Capaz de dribles desconcertantes e dono de um chupe poderoso com ambas as pernas o rapaz era o tormento dos times adversários, do técnico e de todo o time e torcida.

Tudo culpa do temperamento explosivo do rapaz. Se no dia-dia era de uma placidez bovina, de chuteiras, parecia um miúra ferido. Perdia completamente o bom senso e reagia com desmesurada violência à qualquer provocação, por menor que fosse.

Os adversários já sabiam dessa faceta do atacante e tentavam provocá-lo antes que ele pudesse fazer algum estrago. O que nem sempre dava muito certo. Nos onze jogos do Torneio Intermunicipal, Tantinho jogara cinco, fizera gols em todos, nove no total, e sempre terminara expulso em menos de meia hora.

Evitando maiores desastres, o técnico Dudu Trombeta mantinha-o no banco de reservas, só colocando em campo quando a situação era desesperadora. O time do Operário era mediano, mas com Tantinho se tornava temível. A única barreira para a conquista do título inédito era o time de Monte Verde, o Esmeralda Futebol Clube. O grande campeão do troféu possuía sete das nove taças disputadas, sendo inclusive pentacampeão consecutivo, com jogadores do plantel inclusive sendo sondados por times da capital.

Durante o torneio os times haviam se enfrentado duas vezes, uma com e outra sem Tantinho, suspenso. Empate por dois gols com o atacante em campo (ambos os gols dele) e uma derrota por uma a zero quando ele não estava. Time com a melhor segunda campanha do campeonato, chegara às seminifinais sem o atacante em campo, mas conseguira uma heróica vitória frente ao tradicional Esportivo Miraflor, de Miraflores. De azarão na disputa, chegava com esperanças na final contra o favorito Esmeralda.

O Torneio Intermunicipal era um evento e tanto naquela região, os times representantes de seis cidades se enfrentando dentro e fora de casa, com os quatro melhores fazendo final e semifinal em campo neutro. Aos domingos, durante quase três meses, dias dos jogos, caminhões, caminhonetes, carros de passeio e até cavalos e carroças se deslocavam entre as cidades para assistir aos jogos e acompanhar os times favoritos.

Famílias inteiras se agitavam nas arquibancadas, berrando os nomes dos jogadores, que davam até entrevistas para os jornais locais, acirrando ainda mais as disputas. Tamanha era a comoção que o Torneio provocava que especulava-se que olheiros de times da capital estariam infiltrados na torcida para ver se algum jogador poderia alçar vôos maiores que os campos de várzea e as arquibancadas de madeira.

O domingo da final apresentava um sol lindo e brilhante, poucas nuvens e uma temperatura agradável. Tudo conspirava para o jogo ser perfeito e as arquibancadas do Estádio Municipal de Miraflores estavam completamente lotadas. Havia gente até em cima dos muros do estádio. Metade torcendo para o verde e vermelho do Esmeralda, metade vestindo o azul e branco do Operário.

O jogo começou duro e assim seguia, o time verde tinha jogadores mais habilidosos, mas a raça dos atletas do Operário conseguia equilibrar a partida. As disputas de bola eram violentas e o juiz distribuía cartões amarelos a torto e a direito. Um zagueiro do Operário e um meio-campo do Esmeralda saíram machucados. Os goleiros estavam inspiradíssimos, fazendo defesas e mais defesas sensacionais. Na linha, os times alternavam momentos de domínio. A torcida vibrava, pulava, vaiava, enlouquecia. O tempo passava e nada de sair um gol.

No banco, Dudu Trombeta amassava o boné entre as mãos e vociferava.

- Pra frente, Juarez! Ataca, Nestor! Cruza, Lelei! Olha o ladrão, Batista!

Vermelho de emoção, o técnico só tirava os olhos do campo para conferir o relógio, e em seguida, olhar para o banco, onde Tantinho estava sentado. Olhos fixos no campo, mudo, mão na boca e unhas roídas até o sabugo, quase sangrando.

Faltavam menos de dez minutos para o fim do jogo quando o pior aconteceu. O lateral do Esmeralda conseguiu se desvencilhar da marcação e centrou na área, o atacante chutou e o goleiro defendeu, mas no rebote, o mesmo lateral acertou um tirambaço no ângulo. Um a zero para o time de verde.

A torcida azul e branca calou-se nas arquibancadas enquanto uma explosão verde-rubra tomava conta do outro lado. O Operário tinha chegado tão longe para morrer na praia. Já não havia mais nada a ser feito. Restavam pouco mais de cinco minutos de jogo e só havia uma medida a ser tomada, uma medida desesperada, ainda mais levando em conta a dramaticidade do jogo. Tantinho.

A cena era insólita, o técnico ajoelhado em frente do jogador sentado no banco, implorando para que ele tivesse um pouco de calma, eram só dez minutos, ele tinha como virar o jogo, era só não cair nas provocações do adversário.

Tantinho levantou-se, era um gigante perto do técnico miúdo e barrigudo. Olhar vidrado no campo, parecia um touro no brete, prestes a entrar na arena de rodeio. Olhos injetados de sangue, bufando. Batendo os pés no chão, para aquecer-se, Tantinho lembrava um boi bravo que escava o chão com os cascos antes de arremeter. Ali ele era um bicho do mato, acuado, com praticamente uma única chance.

As tuas torcidas gritavam seu nome, os azuis, com palavras de apoio, os verdes, com vaias. O juiz autorizou a substituição antes da nova saída de bola. Tantinho entrou em campo, o primeiro passe foi para ele, desviou-se de um carrinho, driblou dois zagueiros e acertou uma patada no ângulo do goleiro esmeralda. Empate!

Primeiro lance e ele havia colocado novamente o Operário na disputa. Os jogadores se abraçavam, homens adultos viravam crianças nas arquibancadas, as mocinhas quase desmaiavam de emoção.

O Esmeralda não pareceu abalado com o gol sofrido, deu a saída e continuou tocando a bola como antes. Para desespero dos azuis, um zagueiro do Esmeralda colou em Tantinho, provocando-o, xingando, dando empurrões e toques em suas canelas. Será que ele ia novamente perder a cabeça e deixar o time na mão em hora tão importante? Será que ele suportaria os menos de cinco minutos até o fim do jogo, tentando aproveitar uma chance ou até mesmo os pênaltis?

Ataque do Esmeralda, o juiz já olhando o relógio, pressão total do time verde. Os azuis todos, Tantinho inclusive, defendendo. Num bate-rebate, a bola sobra nos pés do astro maldito do Operário, que avança contra a meta adversária. Deixando marcadores para trás, fugindo de tesouras voadoras, carrinhos e empurrões, ele chega até a intermediária inimiga e fulmina o goleiro adversário, que mal toca na bola. Operário dois a um e o juiz encerra o jogo. Caído em campo, Tantinho é coberto pelos colegas de time, que o soterram sob seus corpos numa homenagem pelo gol heróico e por ter suportado as provocações sem perder a cabeça.

Erguem-no nos braços, desfilam com ele pelo campo, passeiam em frente á torcida, que em êxtase, berra o nome de seu salvador.

Quando baixam o jogador, para que ele possa ajudar a levantar a taça, ele não fica em pé. Correm atrás de médicos! Gritam por ajuda! Alguém traga água, abre espaço para ele respirar! Cadê o doutor? Acho que ele morreu, gente!

O pânico se espalha pelo gramado e chega as arquibancadas. A platéia emudece. Azuis e verdes se abraçam, pelo pavor de ver um homem morto em campo. O médico enfim chega, examina o rapaz e balança a cabeça. Um ataque do coração matou o herói do título.

O Operário e sua torcida voltam para casa. O que seria um retorno triunfal transforma-se num cortejo fúnebre. À frente, um carro com a taça e o corpo de Tantinho. Entram em silêncio na cidade. A notícia já chegou e se espalhou. A população está na porta das casas, todos de azul e branco. Batem palmas ao passar o cortejo, palmas e lágrimas acompanham o retorno do herói, sua trupe e seu troféu.

Preparam um enterro com honras para o jogador. A cidade inteira comparece e canta o hino do Operário Esporte Clube à beira do túmulo. Tantinho é enterrado com a camisa do clube e a faixa de campeão. Na sede do clube, um único troféu, do X Torneio Intermunicipal. À frente dele, uma foto preto e branco, Tantinho.

7.6.10

À espera

Ele começou a olhar pelo olho mágico assim que ouviu a porta do elevador abrir.Às onze da noite qualquer barulho era amplificado e ele sabia que ela estava para chegar, isso dazia com que estivesse duplamente atento à qualquer barulho.

Era a terceira vez que o elevador se abria. Na primeira, a vizinha do 706 que chegava da rua, completamente bêbada. Na segunda, o pederasta do 702, após o passeio com o poodle. Agora era ela. O apartamento estava impecável. Limpo, cheiroso e bem arrumado. Roupa de cama nova. Uma garrafa de prosecco no balde de gelo, uma caixa de bombons sobre a mesa. Até flores de verdade no arranjo da estante. Tudo pronto para recebê-la.

Ele olhou-a vindo em direção ao apartamento. Ela tinha um corpo bonito. Nem magra, nem gorda. Curvas nos lugares certos. Estava frio lá fora, início de junho. Ela usava botas de couro creme e salto alto, deixando-a com um porte ainda mais bonito. Os jeans eram de boa marca, colados ao corpo, mas sem vulgaridade. O casaco de lã branca não escondia o bom volume dos seios e as curvas que definiam cintura e quadris.

Nos ombros, a bolsa era a réplica de uma marca famosa. Os cabelos curtos, de um castanho avermelhado, emolduravam o rosto de pele muito branca, ligeiramente avermelhado nas bochechas por conta do frio. E, mesmo na distorção do olho mágico ele via os olhos verdes dela. Verdes e grandes, amendoados e cheios de expressão e malícia. Ela passou a língua pelos lábios e apertou a campainha. Ele esperou um instante, a respiração presa, para, então, abrir a porta. Ela sorriu. Tinha os dentes miúdos e muito brancos.

Afastou-se um pouco para que ela entrasse e fechou a porta. A convidada andou um pouco pela sala, aprecisando o capricho com o qual ele a recebia. Sorriu ao ver os bombons e a bebida. Respirou fundo e virou-se para o anfitrião, com o mesmo sorriso nos lábios.

Antes que ela falasse algo, ele estendeu um envelope para ela, que abriu, conferiu o conteúdo e guardou-o na bolsa.

- Muito obrigado... está tudo certinho. Você decide o que faremos agora. O valor cobre meus serviços até o amanhecer.

21.5.10

No ponto

Umas nove da noite, Central do Brasil. Esperando a condução, como todo santo dia. E, como todo santo dia, depois do trabalho, da reclamação de praxe do chefe, de conferir o poste e pedir uma lata no isopor, pra adoçar a boca e acalmar a cuca antes da volta pra casa, os dois conversavam. E o papo ia do futebol à crise no governo. E no meio, mulher. E passava uma mulatinha jeitosa e o papo era ela. E passava uma loirinha espevitada, e o papo era ela. Aí quando não passava nada, os dois começavam a reparar em quem, como eles, estava esperando o lotação.

Aí que os dois viram um casal parado no meio-fio. Ele na rua, ela na calçada. A diferença de altura era a do asfalto para o passeio, o que não era pouco, assinalou um. Aí o outro chamou a atenção para a moça em questão.

Nenhum dos dois era de ficar recusando prato, mas foram unânimes em desdenhar a figura. Pra começar, a tal usava um vestidinho que já seria de gosto duvidoso em uma mocinha com tudo em cima, e a referida, além de já ter passado há muito do 'mocinha', estava era com tudo para os lados e para baixo. Um deles, o mais falante, comentou que a moça era que nem acidente de carro com vítima, cê sabe que não é pra olhar, porque vai ficar impressionado e vai acabar tendo pesadelo com aquilo, mas o olho, que não obedece, vai lá e olha e cê fica com raiva de você mesmo. Realmente, ela era a visão panorâmica do inferno e tinha pedido pra ser feia no Vale do Eco. Mas o moço estava ali, atracado com ela, como se a feiosa fosse o último torresmo do boteco, no maior amor.

Ficaram impressionados como um cara, que era até bonitão, estava com uma mulher tão feia. Certamente, assinalou o falante, ele teria condição de arrumar coisa melhor, os dois mesmo, que eram bem menos agraciados que o moço, tinham mais sorte nas conquistas. Aí o mais calado resolveu abrir a boca, encerrando a discussão.

- Ora... vai ver ele perdeu uma aposta.

4.4.10

Fechando a conta

Uns grãos de arroz caíram sobre a toalha quando ele colocou as travessas na mesa. As mãos tremiam muito, mas conseguiu servir o casal sem derramar mais nada. Apesar do tremor, as quatro décadas de experiência fizeram com que cortasse o filé com maestria. O senhor gordo da mesa ao lado notou a eficiência do garçom, assim como a língua entre os dentes e as gotas de suor que a concentração provocou. Um grupo nos fundos do restaurante berrou um nome incompreensível e o homem que tremia se dirigiu até eles.

Era baixinho, careca e usava óculos de lentes grossas. Elas eram mais finas quando começou a trabalhar ali e foram engrossando com o tempo. Juntamente como as juntas de seus dedos e os joelhos, que agora o forçavam a tremer e andar arrastando os sapatos de couro preto. Era o garçom mais antigo do restaurante. Fora admitido logo após a inauguração. Passaram por ali vereadores, prefeitos, deputados, até um governador. Ele servira a todos. Eles vieram, tiraram fotografias e passaram. Ele continuava ali, em meio a outros muito mais jovens que ele. os antigos colegas estavam mortos, ou, em melhor hipótese, aposentados, entrevados em suas casas.

Ele continuava ali, resistindo ao tempo. Só não sabia até quando. Já estava aposentado, mas o benefício não dava, nunca dava. E ele continuava ali, no turno da noite de terça a sexta e de dia aos finais de semana e feriados. Arrastando os pés e tremendo ao servir os pratos de pessoas que o olhavam como uma peça de museu no lugar errado. Ficava ali nem sabia mais porque. O filho estava criado, a mulher, morta e enterrada. Até a amante havia partido.

O grupo pediu uma rodada de chopes, oito ao total. Ele arrastou-se até o balcão e anotou o pedido. O rapazinho da chopeira, que poderia ser seu neto, resmungou que era pra esperar, tinha de tirar outros nove primeiro. Ajeitou as lentes dos óculos e avaliou o salão. Todos rindo, comendo, satisfeitos. Copos e pratos cheios. Foi ao banheiro, aproveitando-se do tempo que os chopes iam demorar. Entrou num dos reservados e sem som ou saber porque, chorou sozinho, protegendo o rosto com as mãos trêmulas.

26.3.10

Só isso

e às vezes me sinto só
com gente na sala ao lado
no meio do bloco da terça-feira
no vazio da repartição

às vezes me sinto só
no balcão do botequim
no meio das gargalhadas dos amigos
e do chope bem tirado

às vezes me sinto só
com tanta coisa pra pensar
minúcias tão grandiosas
que só eu mesmo a imaginar

às vezes me sinto só
como nunca pensei estar
mas aí estufo o peito, levanto os olhos
me forço a recomeçar

22.3.10

Fim de festa

Todos já tinham ido dormir. Abriu a geladeira. Uma derradeira garrafa de cerveja. Abriu-a e despejou parte do líquido dourado em um copo grande, de vidro. Agora que todos haviam ido embora, podia dispensar os tétricos copos plásticos. Olhou para o chão, salpicado de pequenos pedaços de papel. A sobrinha havia feito um saco de papel picado para jogar no pai na hora dos parabéns. Achou o gesto da pequena bonito. A menina amava o pai, não era por menos, o cunhado era um sujeito ótimo. Fazia muito bem à filha e à irmã, que também era apaixonada por ele.

Sorriu melancólica ao lembrar da festa. Farra pequena, casa de subúrbio cheia com dez ou doze convidados. Bebida à vontade, salgadinhos, bolo, docinhos no fim. Uma alegria barulhenta e urgente, música. Coisas boas de se guardar. Fotos, muitas fotos. Até o meio da semana seguinte, todas estariam espalhadas pela internet. Colocadas por todos os que levaram uma máquina digital para o aniversário.

A cerveja ia pela metade. Encheu novamente o copo. Lembrou das moças em quem reparara durante a festa. A morena de boca vermelha que não retribuiu seus olhares e a loira de olhos desbotados e tristes que alegou ter um namorado quando a conversa se tornou íntima e pessoal demais. Idiotas! Virou o resto da cerveja e colocou no copo o que sobrara da garrafa. Guardou o casco sob a pia e pegou uma vassoura.

Ouviu o ronco do cunhado vindo do quarto. Coitada da sobrinha, dormindo ao lado do pai, roncando feito um porco. A pobrezinha cedera o quarto, deixando a cama livre para um sono de canelas para fora do colchão. Sorriu novamente e terminou a cerveja do copo, colocou-o cheio dágua dentro da pia e pegou a vassoura para varrer todo o papel caído no chão. Apoiou-a na perde, juntou o cabelo num coque no alto da cabeça e puxou a saia um pouco para cima, facilitando os movimentos e, solitária, começou a limpar a sujeira para todos poderem acordar um pouco mais tarde no dia seguinte.

18.3.10

Um casal de urubus

Sentiu a pele queimando e a luz fez suas retinas doerem assim que abriu os olhos. Deitado no chão duro, tentou descobrir onde estava, só para perceber que o lado esquerdo de seu corpo estava totalmente paralisado. Mexeu a cabeça o máximo que pôde. Só pode notar que estava entardecendo e que havia uma árvore perto dele, com dois urubus empoleirados num galho seco. A cabeça também doía e ele tentou lembrar como viera parar ali, deitado, paralisado, a boca seca e os olhos doloridos.

Lembrava do embarque no navio que o levou, junto com vários camaradas para o sul. O desembarque e o trajeto até a frente de batalha, a cumplicidade na caserna, as escaramuças contra o inimigo e a diversão no bordel que acompanhava a tropa. A imagem da noiva em seu vestido azul, acenando para ele no porto se confundia com a morena de vestido vermelho sobre quem ele se deitava nas vésperas de batalhas.

Em sua cabeça, os gemidos da china se confundiam com os gritos da soldadesca. Lembrou de estar, junto com mais alguns soldados de seu regimento de cavalaria perseguindo inimigos que fugiam. Lembrava da cara do primeiro paraguaio que passou pelo fio da espada. De como os amigos riam e praguejavam enquanto perseguiam os pobres diabos que fugiam pela campina.

Piscou os olhos, ao seu redor, apenas o ruído do vento nas folhas da árvore. Os dois urubus olhavam um para o outro, indiferentes à sua presença ali no chão. Um começou a alisar as penas do outro com o bico, uma estranha amostra de afeto, que o lembrou da noiva acariciando seus cabelos após a missa de domingo, antes do almoço no sobrado da família.

Em sua cabeça, chegou a imagem de dois paraguaios correndo pra um lado, se separando do grupo principal. E ele guinando o alazão em direção a eles, espada em riste, gritando, sangue nos olhos. Alcançou o primeiro paraguaio e golpeou-lhe o pescoço com o sabre. Guinou o cavalo para o segundo, para terminar o serviço e deparou-se com um orifício negro apontado para si. O paraguaio sobrevivente tinha uma pistola e apontava pra ele. Sentiu uma ardência do lado esquerdo, mas mesmo assim conseguiu acertar o ombro do inimigo, derrubando-o, a espada presa da carne do outro.

Lembrava-se ainda de ter continuado no lombo do cavalo, abraçado ao pescoço do animal, segurando um lenço sobre o ferimento. A imagem da noiva vinha e voltava à sua mente, agora ela estava de joelhos, rezando uma novena na igreja matriz. Tentou cuspir, mas a boca estava seca demais. Nenhum som. Nem de tiros, nem de gritos, gemidos, cornetas. O cavalo devia ter levado-o para bem longe. Teve vontade de chorar, mas controlou-se. Não conseguia mexer-se e sentia-se cada vez mais fraco.

No galho seco, os dois urubus agora pareciam notar sua presença. Haviam parado de alisar as penas um do outro e olhavam fixamente para ele. Fez mais um esforço para se levantar, não conseguiu. Agora a perna direita já não respondia mais, o braço direito cada vez mais pesado. Tentou pegar uma pedra de jogar nos urubus. Não teve força.

Um dos pássaros voltou a alisar as penas do outro com o bico, e ele parecia ver a silhueta da noiva atrás de um deles, e atrás do outro, o sorriso da china ao receber as patacas de prata após o coito. Suspirou e fechou os olhos, cada vez mais cansado, enquanto os urubus continuavam a se alisar, donos de todo o tempo do mundo.

8.3.10

No metrô

Ele entrou no vagão do metrô sem notá-la. Só quando uma senhora deixou cair uma revista e ele se abaixou para pegá-la é que pode vê-la.

Ela era morena e magra. Os cabelos eram compridos, escuros e grossos, deviam ir até o meio das costas, mas ela os prendera numa trança frouxa que caía pelo ombro esquerdo. Era uma mulher comum. devia ter entre 33 e 35 anos, a pele era clara, dessas morenas que pega cor nos primeiros raios de sol, mas que prefere a afago do ar condicionado e fatores de proteção acima de 50 ao invés de loções bronzeadoras. Ela tinha olhos escuros, castanhos ou negros, ele não pôde discernir bem, encimados por sombrancelhas cheias de curiosidade. Ela parecia tr os incisivos um pouco maiores que a estética comum acharia ideais, o que deixava sua boca de lábios finos eternamente entreaberta.

A frente fria que chegara á cidade no final de semana a fazia usar uma blusa vermelha de malha canelada até os punhos e a gola alta escondia um pescoço que ele julgava longilíneo e delicado. Ela tinha mãos magras e esguias, com unhas sem esmalte. Ficou reparandona elegância com que ela virava as páginas do livro apoiado nas calças pretas que ela vestia. Ela parecia ter pernas finas, pensou ele. Desde que fossem harmoniosas, tudo bem, ele não se incomodava.

Achou graça no próprio pensamento, mas sim, aquela era uma mulher com quem ele flertaria numa festa. Elegante, mas não blasé. Bonita, mas não exuberante. Ainda parecia ser culta, o livro em seu colo parecia ser bem grosso, as páginas amareladas deviam pertencer a algum dos clássicos idênticos aos que se amontoavam em sua mesa de cabeceira de homem recém-solteiro. Ficou pensando se a abordava ou não. Estavam se aproximando da última estação e ambos iriam ter de saltar. Será que ela aceitaria um convite para um café na livraria perto da estação? Ou seria melhor convidá-la para jantar? Ou mesmo ir ao cinema, a próxima sessão estava para começar, daria tempo com certeza!

Mas... e se ela estivesse indo se encontrar com alguém? Reparou novamente nas mãos dela, não havia marca de alianças, mas isso não indicava nada. ela poderia estar indo encontrar o namorado, o amante, qualquer coisa. Até mesmo a tia que ela combinara de encontrar para devolver o livro que lia. Será que ele conseguiria se recuperar de mais uma decepção? Não fazia um mês que a mulher se separara dele, saindo de casa após uma discussão imbecil sobre a conta de luz. Um nó na garganta apertava-lhe, sufocando-o.

O apito do metrô trouxe-o de volta a realidade. A composição desacelerava e as poucas pessoas dentro do vagão naquele sábado frio iam se levantando em direção à porta. Ela guardou o livro dentro da bolsa, e ele pôde ver o título "Cem anos de solidão". Era seu livro preferido, lera-o três vezes! Era um sinal dos céus! Estava tão embasbacado que mal conseguiu ir atrás dela quando ela saiu rumo às escadas rolantes. Trombou em alguns passageiros retardatários mas conseguiu alcançá-la antes que ela saísse à rua, tocando de leve no braço esquerdo dela.

Ela se virou e encarou-o nos olhos. Ela tinha olhos surpreendentemente plácidos, como se toda a calma do mundo estivesse ao lado dela. Ele tinha de se rápido, escolher a melhor frase, uma única frase que fizesse com que ela aceitasse continuar a conversar com ele e não achasse que ele era um maluco, um tarado, um potencial agressor. Ele tinha de mandar a frase certa, respirou fundo e disparou, ante os olhos calmos e incrédulos da moça de blusa vermelha:

- Eu queria te chamar para um café, para jantar ou para ir ao cinema, mas eu só consigo falar que sou apaixonado pelo livro que vi você ler...

Mulher

venero
teu gosto doce
agridoce de suor salgado
eternamente em minha boca
em minha língua
sempre a sussurrar teu nome
a me sentir infame
a me achar perfeito
por ser seu eleito
por ter desfeito
todas as tuas esperanças
só pra recontruí-las a teu lado
só pra ter você
inocente e provocante
a me acordar sorrindo
mesmo ao dormir chorando
e acalentar teu pranto
sem razão, sem motivo
e me saber resolvido
a nunca te ver chorar
quando sorrio de tuas lágrimas
e me comovo com teu riso
pra você me ajoelho
na mais abjeta e sublime devoção
que te venero
que te odeio
que te quero
que te desejo
e mais alto me inflamo
que me ofereço
e proclamo
te adoro
te amo
mulher

24.2.10

À noite

- É mais fácil te pagarem uma cachaça do que um salgado. E o preço é o mesmo.

A frase martelava sem parar em seus ouvidos. Quase dois dias sem comer, mendigando em botecos e biroscas. Os olhos baços de fome enchiam-se de desejo pelos salgados queimados e gordurosos nos pratinhos da vitrine. Ainda lembrava do homem gordo e suarento que, do alto de sua bem nutrida circunferência, deu-lhe um tapinha nas costas e meteu-lhe um copo plástico cheio de cerveja na mão. Bebeu com sofreguidão, o líquido dourado pelo menos faria alguma presença no estômago. A fome foi confundida com vício e risos espocaram em volta do balcão.

- Tá vendo, é fome nada, tá é seco por uma gelada!"

A piada doeu mais que as pontadas no estômago e ele se retirou feito cachorro que fez mal-feito, arrastando os pés. Ficou sabendo que um pessoal costumava passar por ali para dar quentinhas aos moradores de rua. Tentou se sentar numa ponta da calçada, mas foi enxotado pelos outros mendigos, a comida nem era pouca, mas não iam deixar mais um se aproveitar da caridade alheia.

Viu um carro se aproximando, faróis baixos, a velocidade cada vez mais reduzida. Achou que seria uma alma caridosa e esperou. Levou um susto quando a garrafa plástica cheia de álcool explodiu em seu peito. Nem havia se recobrado quando um fósforo, jogado pelos garotos de dentro do carro transformou-lhe o corpo numa boal de fogo. Rolou pelo chão, tentando apagar as chamas, enquanto os rapazes arrancavam com o carro, rindo do espetáculo que iluminava a madrugada da cidade.

Morto de fome, morreu queimado, como os salgados que lhe haviam sido negados. Virou churrasco na avenida, manchete no jornal no dia seguinte, estatística pouco depois, cova rasa pra todo o sempre.

19.2.10

Fumaça e trumpete

A porta fechou-se atrás dela sem ruído. A fumaça do ambiente abraçou-a afetuosamente, embriagando-a com um hálito doce e perverso. De longe, muito longe, um som chegou-lhe aos ouvidos. Procurou o balcão e um copo cheio de gelo, com uma bebida que lhe queimava as entranhas. Apoiou os cotovelos sobre a madeira ensebada e acendeu um cigarro. Queria contribuir com a decoração do ambiente. O som era cada vez mais pungente, quase choroso e ela começou a sentir um aperto por baixo do miúdo seio esquerdo. Uma lágrima umedeceu-lhe os olhos, parte pela dor da música, parte pela fumaça acre do salão. A batida vigorosa de uma caixa trouxe-a de novo ao mundo. Apertou os olhos no exato momento que o homem do trumpete tirava a surdina e o suíngue da banda parecia socar a fumaça azulada nas paredes. Foi tomada por uma vontade incontrolável de dançar, mas resignou-se a bater com a ponta das sandálias no apoio de latão para os pés.

Olhou para o relógio enevoado por cima da prateleira de bebidas. Já era hora. Virou-se em direção à porta, esperando a fumaça se abrir e dar passagem a quem ela sabia que não demoraria a chegar. Realmente não demorou. Ela ainda estava na primeira metade da bebida marrom e cheia de gelo quando ele entrou. O sorriso amplo, de dentes brancos e grandes, os gestos largos, o rosto moreno e brilhante. De cada lado, uma moça de vestido curto e sorrisos de notas de cinqüenta.

Levantou-se, deixando uma cédula sob o copo mal bebido e furou a fumaça em direção ao trio. Viu o sorriso murchar no rosto do meio quando se aproximou. Os olhos dele piscaram uma, duas, três vezes. E quando o trumpete atacava um solo em mi bemol, um direto de esquerda encontrou o nariz abaixo daqueles olhos que piscavam de fumaça e surpresa. Com o homem caído na névoa e o grito das acompanhantes se misturando aos berros do trumpete e à fumaça azeda, ela saiu do bar, embalada pelo solo estridente do trumpetista, mais leve que a fumaça azulada que ela deixava pra trás.

11.2.10

Cobranças

- Tá bom, eu te empresto o livro, agora me deixa quieto.
- Queria que você me ouvisse mais. Cê tá sempre correndo pra baixo e pra cima e esquece de mim.
- Não, eu não esqueço de você. Eu apenas tenho um jeito diferente de ver a vida, de encarar as coisas. Eu organizo meu tempo diferente de você.
- Organiza e me deixa com as migalhas. Você não tem tempo pra mim, só pra esse teu trabalho estúpido.
Ele colocou o livro sobre a mesa e olhou para ela. Respirou fundo, medindo as palavras, deixando o silêncio preparar a situação para uma frase de efeito como a dos filmes que viam juntos. Para um frase forte, dessas de um diálogo que fosse lembrado em conversas de botequim. Para uma frase que ele sabia que não viria. Deixou o silêncio prepará-la para ouvir uma frase como todas as frases comuns do cotidiano. Uma frase tão pequena quanto a vida miúda deles dois.
- Meu trabalho não é estúpido, ele te comprou esse vestido e esses brincos. E ele paga o aluguel desse apartamento.
Ela deixou-se cair na poltrona em frente a ele. As pernas ainda eram tão bonitas como quando eles se conheceram.
- Eu sei, eu só não quero mais ficar tanto tempo sozinha.
- Eu não estou te deixando sozinha, eu estou aqui...
- Mas parece que não está!
- Poxa, eu trabalhei pra caramba hoje, quero só uns minutinhos pra relaxar... aí depois eu vou ser todo seu, você sabe disso... até quando você não quiser mais.
- Eu não quero ficar sozinha!
- Você não está sozinha - ele levantou-se, jogando o livro sobre a mesa, Foi até ela e a abraçou, beijando-a - eu estou aqui, e você não está sozinha!
- Obrigado... sabe... eu preciso disso... pra ficar sozinha eu não venho pra cá e fico com meu marido.

20.1.10

Platão

- É uma coruja?
- É, olha como a penugem é macia!
- Onde cê achou ela?
- O Porfírio, porteiro aí da frente que achou, parece que ela tá com a asa machucada, ele não tem como cuidar, pediu pra eu cuidar dela.
- Esse bicho vai emporcalhar a casa.
- Deixa de ser besta, ninguém ou bicho nenhum consegue ser mais porco que você

***

- Cadê o Platão?
- Quem?
- Platão, a coruja, ora!
- E desde quando você sabe se a porra da coruja é macho pra chamar ela de Platão?
- Cê também num sabe. Acho que ela é macho e tem cara de Platão. Cadê?
- E eu sei? Ela é sua, o Platão. Cê que tem de dar conta dela. Deve estar na área de serviço, lá tem um canto escuro. Deve estar lá, dormindo.

***

- Quer que traga cerveja?
- Quero, e pede ao cara do açougue, o careca, pra mandar as aparas de carne que ele guardou pra mim.
- Aparas? Que aparas?
- É pro Platão... ele guarda as sobras que iam pro lixo pra eu dar pro Platão, ele adora.
- Cê tá ficando maluco com essa porra dessa coruja.

***

- Acho que isso já passou dos limites. Você só quer saber dessa porra dessa coruja.
- Pô, o Platão é legal e me segue que nem cachorro, minha mãe nunca me deixou ter cachorro.
- Aí agora, com trinta anos na fuça você me arruma uma coruja?
- Péra lá, quem trouxe ela foi você!
- Trouxe sim, era pra cuidar da porra da asa quebrada dela e soltar ela de novo!
- As janelas ficam abertas, ele não sai porque gosta daqui, ele gosta de mim, sou o dono dele.

***

- Ele ainda tem a porra da coruja?
- Não, não tem mais.
- Como assim? Ele tinha até foto com a coruja no ombro! Como fez pra ele largar do bicho?
- Comprei um ratinho branco. Coloquei na escrivaninha dele, dois minutos antes dele chegar. O bicho não teve nem chance. Quando ele entrou no quarto o ratinho ainda tava estrebuchando e o Platão com o bico todo sujo de sangue.
- E ele?
- Fresco do jeito que ele é, deu um chilique de pena do ratinho e colocou Platão pra fora, com rato moribundo e tudo. Aí fomos passar uma semana na casa da tia dele no interior, porque a porra da coruja continuava querendo entrar, gostava mesmo dele, e ele traumatizado. Agora acabou, voltou tudo ao normal, ou quase.
- Quase?
- É, sem a porra da coruja ele deu para prar de respeitar quando eu alego que tou com dor de cabeça de noite.

6.1.10

Teresa

- Vem cá... chega pra lá e me conta o que andou acontecendo?
Teresa levantou os olhos do jornal e chegou-se um pouco para o lado no banco em frente à casa para dar lugar. A amiga subia a rua, voltando o trabalho e parara para saber das novidades dela. Corria o boato na fábrica que o marido dela, após uma briga, retalhara o vestido vermelho novo dela e que o clima no número 76 da Rua das Acácias não era dos mais familiares.
- Simples, nega. Aquele traste foi no forró do Ademir e não me levou. Chegou em casa três da manhã, fedendo a pinga e a vagabunda. Fiquei quietinha na minha, nem falei nada. Nem reclamei, no dia seguinte, tava lá, de manhã. Café na mesa, pãozim na manteiga, tudo nos conformes. Mastiguei a raiva uma semana. No sábado seguinte, depois do almoço, comprei uma garrafa de Princesinha, tomei um banho, me perfumei e entrei no quarto com ele. Oito da noite ele tava dormindo, dei uma chave de perna do desgraçado que, juntando com a meia garrafa de pinga, deixou ele num desmaio que só vendo. Tomei outro banho, meti aquele vestido vermelho, colado nas ancas, pus o que sobrou da garrafa na bolsa e me mandei pro forró. Fiz que nem ele. Voltei já amanhecendo, bêba que nem uma gambá e nem fiz questão de esconder o chupão que ganhei no quengo.
- Mas e aí? Ele num falou nada não?
- Inté tentou, mas quem disse que eu deixei. Só mandei pra ele, antes que ele abrisse a boca: "Quando cê voltar no forró, quero estar do teu lado, traste, senão vai ser essa trocação de chumbo até o dia do juízo, ou acaba a palhaçada aqui ou essa história vai virar carnaval de uma vez!"
- Ê, ê, mulher, e ele?
- Meteu a viola no saco, minha filha, sentou, tomou o café. Só reclamou de eu ter secado o resto de Princesinha. Aí eu achei que ele tinha metido o galho dentro. Só sei que dei um pulo na minha irmã ali no fim da tarde, ver como ela tava. Mas não é que quando eu voltei, o safado tinha retalhado meu vestido vermelho na navalha?
- Ai meu Deus! Então era verdade!
- Ô se num era, mas nega, o sangue subiu nas ventas, abri o armário, tirei as roupas dele tudo de lá de dentro, não esqueci nem a camisa do Botafogo, piquei tudo que parecia enchimento de almofada e meti numa mala, quando ele chegou do futebol, me achou de cabo de vassoura numa mão e a mala na outra. Joguei a mala na frente do traste e lembrei a ele que a dona do barraco aqui ainda sou eu, que ele veio de visita e resolveu que debaixo de meu teto e no meio das minhas pernas é que era bom de morar e foi ficando. Pus ele de cachorro pra baixo e disse que era pra ele tomar tenênça na vida e que eu que mandava, agora da porta pra dentro e da porta pra fora.
- Ai, ai, ai, Teresa, mas e ele? Ficou quieto?
- Minha filha, e aquilo é homem de ficar quieto? Partiu pra cima de mim! Tive de pranchar o cabo de vassoura na cabeça dele com tanta força que até quebrou! Só sei que o bicho caiu no chão gemendo e resmungando...
- Nossa, Teresa, que coisa feia!
- E o pior nem foi isso... o pior é que ele pediu desculpas, emprestou uma muda de roupa no vizinho e continua lá em casa.

5.1.10

Elocubrações

Ele havia dito que era só uma chuveirada. Para tirar o suor do corpo antes de irem ao aniversário de um amigo. Ela viera de casa, ele acabara de sair do trabalho, tinha esse direito. Ela ficou olhando o apartamento dele enquanto ele estava no banheiro. Um quitinete que era do tamanho senão menor do que o quarto dela. Ele morava sozinho, ela ainda vivia com os pais, casa em condomínio de luxo, com seguranças e circuito de TV. Ele vivia num prédio abarrotado de cubículos, um verdadeiro cortiço.

A mobília era espartana. Uma mesa com três cadeiras, uma geladeira. Sobre a bancada de pia que fazia as vezes de cozinha, um microondas. Um pequeno armário de fórmica e uma escrivaninha com um laptop por cima. Um sofá cama e uma prateleira com livros. Ela se aproximou para olhar. Livros velhos, ensebados, desses comprados em camelôs de rua. Bukowski, Garcia Marquez, Hemingway. Passou os dedos pelos títulos.

Sentou-se no sofá, era simples, mas confortável. Ficou imaginando o contraste entre eles. Ela era uma filhinha de papai, com dinheiro, influência e roupas de grife. Ele não tinha nada. Seu salário devia ser menor que a mesada dela, e ele ainda pagava aluguel e a faculdade. Mas ele tinha uma liberdade, uma independência que ela nem imaginava ter. Saber que tudo o que possuía era condicionado ao dinheiro dos pais e ter de dever responsabilidade a eles por isso a irritava. Ele não, ele não devia satisfações a ninguém. Podia, por exemplo, levar quem quisesse em casa sem avisar, e quando bem entendesse.

Quando pensou em quantas mulheres ele já teria levado ali, levantou-se num pulo do sofá, imaginando quantos fluidos haviam sido trocados naquele móvel onde ele dormia. E onde deviam ter dormido todas as suas conquistas. Recuou, num misto de nojo e ciúme. Ele era um cretino, nem duas semanas saindo juntos e já a levava ali, o antro em que ele havia deitado com tantas outras antes dela. Ficou vendo, angustiada, em quais cantos do minúsculo apartamento ela já teria possuído as namoradas anteriores.

Lembrou-se da loira da faculdade que passeava com ele pelos corredores da universidade, exibindo-o, ela deveria ter tido vários orgasmos naquele sofá infecto. E ele cantava no chuveiro. Cretino! Fazia aquilo só para esfregar em seu nariz as conquistas anteriores! E a mulata? Aquela que parecia passista de escola de samba, que era caso dele antes dela? Tinha certeza que ela fora dele sobre a mesa em que agora estava sua bolsa importada. Puxou-a da mesa e apertou-a contra o peito, como se a protegesse de um possível contágio.

Ele continuava cantando no chuveiro, alheio a seus pensamentos. Era realmente um canalha, fizera tudo de caso pensado, para despertar nela aqueles sentimentos, aquele ciúme. O que ele queria com aquilo? Lembrá-la de todas as mulheres que teve antes dela? Ele era um canalha, um pervertido, um sacana! Mas ela não ia deixar barato. Tirou o vestido pela cabeça e meteu a mão na maçaneta do banheiro. O safado havia deixado a porta aberta, era tudo um plano! Entrou no chuveiro ainda de calcinha, sutiã e sapatos caros, colando sua boca na dele antes que ele pudesse sequer perguntar o que ela queria. Ele podia ter tido as outras naquela casa, mas era dela o cheiro que iria ficar na pele dele quando saíssem!

4.1.10

Ressaca

Abriu os olhos. O gosto amargo na boca chegou primeiro, logo em seguida veio a dor de cabeça. Deixou-se cair novamente na cama, o mais suavemente que pôde. Torou a fechar os olhos, tentando lembrar-se da noite anterior. O sol que invadia o quarto, sem dar confiança para as cortinas puída, dizia-lhe que já era tarde, bem tarde. Ainda bem que não trabalharia aquele dia, nem nos próximos. Respitou fundo e fez nova tentativa de se levantar da cama. Segurou as pontas quando a tontura o atacou. Apoiou-se na parede e arrastou-se até o banheiro.

A figura que o encarava no espelho não era das mais apresentáveis. As olheiras fundas, de um tom esverdeado, deixavam clara a vida de devassidão que ele vinha levando nos últimos tempos. Lavou o rosto e escovou os dentes duas vezes, tentando minimizar o gosto ruim. Cogitou a hipótese de tomar um banho, desistiu quando lembrou que o chuveiro estava queimado. Ainda só de cuecas foi cambaleando até a cozinha.

A casa era o cenário de uma terra devastada. Cinzeiros cheios, latas de cerveja e garrafas de todos os tipos estava espalhadas pelos cômodos. Em cima de mesas, embaixo das cadeiras. Sobre o sofá, uma moça cujo nome ele não lembrava roncava, abraçada a uma garrafa vazia de vodca. Quase escorregou numa calcinha rosa no corredor que levava à cozinha. Olhou para trás, confirmando a procedência e chutou-a para um canto.

Abriu a geladeira. Para sua surpresa, ainda restavam algumas latas de cerveja. Pegou uma e descobriu um celular atrás das latas. Era o seu, e funcionava, apesar de estar gelado. A cerveja gelada melhorou um pouco o gosto ruim da boca. Resolveu conferir se havia algum recado no telefone, ainda sem entender como o mesmo tinha ido parar dentro do refrigerador. Não havia mensagem alguma, melhor assim. Procurou o telefone da faxineira, ela atendeu na segunda tentativa e disse que iria na parte da tarde. Eram onze da manhã, daí a pouco ela estaria arrumando a bagunça que imperava ali há alguns dias.

Resolveu voltar ao quarto. A menina ainda dormia abraçada à garrafa, mas não roncava mais. O laptop continuava ligado e funcionando sobre a escrivaninha.Por sorte, não havia entornado bebida nele. Conferiu novamente a conta bancária. O valor recebido com a venda do imóvel que recebera de herança ainda estava quase todo lá, apesar dos esforços em dilapidá-lo nos últimos dias. A cabeça latejando não impediu que ele fizesse novamente as contas. O dinheiro permitiria que ele ficasse pelo menos um ano e meio sem trabalhar. Deu uma risada que terminou em arroto e resolveu acordar a menina da sala. Tinha de perguntar-lhe o nome e aproveitar as duas horas que ainda tinha até a chegada da faxineira.