24.2.10

À noite

- É mais fácil te pagarem uma cachaça do que um salgado. E o preço é o mesmo.

A frase martelava sem parar em seus ouvidos. Quase dois dias sem comer, mendigando em botecos e biroscas. Os olhos baços de fome enchiam-se de desejo pelos salgados queimados e gordurosos nos pratinhos da vitrine. Ainda lembrava do homem gordo e suarento que, do alto de sua bem nutrida circunferência, deu-lhe um tapinha nas costas e meteu-lhe um copo plástico cheio de cerveja na mão. Bebeu com sofreguidão, o líquido dourado pelo menos faria alguma presença no estômago. A fome foi confundida com vício e risos espocaram em volta do balcão.

- Tá vendo, é fome nada, tá é seco por uma gelada!"

A piada doeu mais que as pontadas no estômago e ele se retirou feito cachorro que fez mal-feito, arrastando os pés. Ficou sabendo que um pessoal costumava passar por ali para dar quentinhas aos moradores de rua. Tentou se sentar numa ponta da calçada, mas foi enxotado pelos outros mendigos, a comida nem era pouca, mas não iam deixar mais um se aproveitar da caridade alheia.

Viu um carro se aproximando, faróis baixos, a velocidade cada vez mais reduzida. Achou que seria uma alma caridosa e esperou. Levou um susto quando a garrafa plástica cheia de álcool explodiu em seu peito. Nem havia se recobrado quando um fósforo, jogado pelos garotos de dentro do carro transformou-lhe o corpo numa boal de fogo. Rolou pelo chão, tentando apagar as chamas, enquanto os rapazes arrancavam com o carro, rindo do espetáculo que iluminava a madrugada da cidade.

Morto de fome, morreu queimado, como os salgados que lhe haviam sido negados. Virou churrasco na avenida, manchete no jornal no dia seguinte, estatística pouco depois, cova rasa pra todo o sempre.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto.
Gostei...

Forte Abraço ... Marcio Albino

Daniel Caetano disse...

Lionel, estupendo.
E sabe que eu já ouvi da boca de um mendigo real que é bem por aí mesmo: "Pinga eles me dão no boteco. Eu preciso de dinheiro é pra comprar comida!".
Triste.