4.8.10

Aquarela

- Eu devia ter te feito um filho enquanto podia.

- Não pensa nisso agora, só sossega e fica aí quietinho, não quero falar sobre isso. Passou. Ponto.

Ela estava deitada, uma manta cor-de-rosa a cobria até o busto. Os braços muito brancos estavam repousados sobre a barriga e os cabelos loiros espalhados pelo travesseiro emolduravam o rosto pálido. Ela era bonita, muito bonita. Uma beleza clássica, de atriz de cinema mudo, como ele sempre comentava. Agora ela estava ali deitada. Os olhos verdes fechados, uma expressão de paz e resignação no rosto. Os lábios, antes rosados, quase se confundindo com a brancura da pele.

Ele levantou-se da cadeira e foi até a janela. Do lado de fora, um sol tímido começava a secar o sereno da grama. Ela agora morava num sítio afastado, numa cidade do interior onde ninguém a conhecia. Olhou para a cama, ela dormia tranqüilamente. Resolveu dar uma volta pela casa. Viajara a noite toda, assim que recebera a notícia e chegara há poucos minutos. Ela acordara apenas para recebê-lo e falar um instante sobre a cirurgia, antes de pegar novamente no sono.

A casa era simples, mas confortável, decorada com o bom gosto que era peculiar à dona. Ele passeou pela sala. Um jogo de sofás com mantas coloridas, uma estante de livros ocupando toda a parede e um aparador com galinhas de todos os tamanhos, feitios e materiais. Pegou uma, de cerâmica, e limpou uma pequena mancha de poeira do bico do bibelô, voltando a colocá-la no lugar. Os quadros abstratos nas paredes faziam um contraponto interessante com aqueles bichinhos inanimados. Sentiu-se afundar no tapete felpudo enquanto ia até o quarto de hóspedes, que também era usado como escritório.

Ali a decoração era mais sóbria. Uma cama, mais uma estante abarrotada de livros e uma mesa antiga com um computador portátil em cima. Em uma das paredes, um desenho emoldurado lhe pareceu familiar. Aproximou-se e conferiu a assinatura. Sua ex-esposa. Engoliu em seco. Uma aquarela representando um casal na praia. Os tons estavam mais amarelados do que na época da pintura, dando ao quadro uma aura de simpática decadência. Fechou os olhos quando lembrou o dia em que o quadro fora esboçado e dos dias seguintes, em que observou as cores invadindo o papel. Sem pressa, delicadas e inexoráveis.

Saiu do quarto e foi até a cozinha. A empregada estava terminando de preparar a mesa de café. O cheiro de bolo de milho e de café recém preparado deu-lhe algum ânimo. Parou no umbral da porta. No quintal, algumas galinhas ciscavam na grama perto da pequena horta que ela mantinha como passatempo. Ela agora estava vivendo em paz, feliz. Parecia nem lembrar-se dele ou da paixão que os tinha tragado anos antes. Depois de tanto sofrimento e prazer sentidos apenas por eles dois, ela já devia ter se refeito e afastado seus demônios interiores, coisa que ele ainda não fizera.

Pegou a bandeja de desjejum que a empregada havia preparado e levou até o quarto da cunhada, ainda lembrando o dia em que os dois posaram para a irmã dela na praia.

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