9.7.10

Tantinho

O time do Operário Esporte Clube, de Campo Belo, nunca tinha sido grande coisa. Até Tantinho.

Tantinho era um negro alto, novo ainda, nem exército tinha servido ainda. Trabalhava como servente de pedreiro, sem brilho na ocupação. A vocação de Tantinho era o gramado. No caso, vestindo a camisa azul e branca do Operário. À primeira vista, era um desses atacantes trombadores, que usava a força física como diferencial. O detalhe era que, além de ser extremamente forte, o crioulo era fabuloso com a bola nos pés. Capaz de dribles desconcertantes e dono de um chupe poderoso com ambas as pernas o rapaz era o tormento dos times adversários, do técnico e de todo o time e torcida.

Tudo culpa do temperamento explosivo do rapaz. Se no dia-dia era de uma placidez bovina, de chuteiras, parecia um miúra ferido. Perdia completamente o bom senso e reagia com desmesurada violência à qualquer provocação, por menor que fosse.

Os adversários já sabiam dessa faceta do atacante e tentavam provocá-lo antes que ele pudesse fazer algum estrago. O que nem sempre dava muito certo. Nos onze jogos do Torneio Intermunicipal, Tantinho jogara cinco, fizera gols em todos, nove no total, e sempre terminara expulso em menos de meia hora.

Evitando maiores desastres, o técnico Dudu Trombeta mantinha-o no banco de reservas, só colocando em campo quando a situação era desesperadora. O time do Operário era mediano, mas com Tantinho se tornava temível. A única barreira para a conquista do título inédito era o time de Monte Verde, o Esmeralda Futebol Clube. O grande campeão do troféu possuía sete das nove taças disputadas, sendo inclusive pentacampeão consecutivo, com jogadores do plantel inclusive sendo sondados por times da capital.

Durante o torneio os times haviam se enfrentado duas vezes, uma com e outra sem Tantinho, suspenso. Empate por dois gols com o atacante em campo (ambos os gols dele) e uma derrota por uma a zero quando ele não estava. Time com a melhor segunda campanha do campeonato, chegara às seminifinais sem o atacante em campo, mas conseguira uma heróica vitória frente ao tradicional Esportivo Miraflor, de Miraflores. De azarão na disputa, chegava com esperanças na final contra o favorito Esmeralda.

O Torneio Intermunicipal era um evento e tanto naquela região, os times representantes de seis cidades se enfrentando dentro e fora de casa, com os quatro melhores fazendo final e semifinal em campo neutro. Aos domingos, durante quase três meses, dias dos jogos, caminhões, caminhonetes, carros de passeio e até cavalos e carroças se deslocavam entre as cidades para assistir aos jogos e acompanhar os times favoritos.

Famílias inteiras se agitavam nas arquibancadas, berrando os nomes dos jogadores, que davam até entrevistas para os jornais locais, acirrando ainda mais as disputas. Tamanha era a comoção que o Torneio provocava que especulava-se que olheiros de times da capital estariam infiltrados na torcida para ver se algum jogador poderia alçar vôos maiores que os campos de várzea e as arquibancadas de madeira.

O domingo da final apresentava um sol lindo e brilhante, poucas nuvens e uma temperatura agradável. Tudo conspirava para o jogo ser perfeito e as arquibancadas do Estádio Municipal de Miraflores estavam completamente lotadas. Havia gente até em cima dos muros do estádio. Metade torcendo para o verde e vermelho do Esmeralda, metade vestindo o azul e branco do Operário.

O jogo começou duro e assim seguia, o time verde tinha jogadores mais habilidosos, mas a raça dos atletas do Operário conseguia equilibrar a partida. As disputas de bola eram violentas e o juiz distribuía cartões amarelos a torto e a direito. Um zagueiro do Operário e um meio-campo do Esmeralda saíram machucados. Os goleiros estavam inspiradíssimos, fazendo defesas e mais defesas sensacionais. Na linha, os times alternavam momentos de domínio. A torcida vibrava, pulava, vaiava, enlouquecia. O tempo passava e nada de sair um gol.

No banco, Dudu Trombeta amassava o boné entre as mãos e vociferava.

- Pra frente, Juarez! Ataca, Nestor! Cruza, Lelei! Olha o ladrão, Batista!

Vermelho de emoção, o técnico só tirava os olhos do campo para conferir o relógio, e em seguida, olhar para o banco, onde Tantinho estava sentado. Olhos fixos no campo, mudo, mão na boca e unhas roídas até o sabugo, quase sangrando.

Faltavam menos de dez minutos para o fim do jogo quando o pior aconteceu. O lateral do Esmeralda conseguiu se desvencilhar da marcação e centrou na área, o atacante chutou e o goleiro defendeu, mas no rebote, o mesmo lateral acertou um tirambaço no ângulo. Um a zero para o time de verde.

A torcida azul e branca calou-se nas arquibancadas enquanto uma explosão verde-rubra tomava conta do outro lado. O Operário tinha chegado tão longe para morrer na praia. Já não havia mais nada a ser feito. Restavam pouco mais de cinco minutos de jogo e só havia uma medida a ser tomada, uma medida desesperada, ainda mais levando em conta a dramaticidade do jogo. Tantinho.

A cena era insólita, o técnico ajoelhado em frente do jogador sentado no banco, implorando para que ele tivesse um pouco de calma, eram só dez minutos, ele tinha como virar o jogo, era só não cair nas provocações do adversário.

Tantinho levantou-se, era um gigante perto do técnico miúdo e barrigudo. Olhar vidrado no campo, parecia um touro no brete, prestes a entrar na arena de rodeio. Olhos injetados de sangue, bufando. Batendo os pés no chão, para aquecer-se, Tantinho lembrava um boi bravo que escava o chão com os cascos antes de arremeter. Ali ele era um bicho do mato, acuado, com praticamente uma única chance.

As tuas torcidas gritavam seu nome, os azuis, com palavras de apoio, os verdes, com vaias. O juiz autorizou a substituição antes da nova saída de bola. Tantinho entrou em campo, o primeiro passe foi para ele, desviou-se de um carrinho, driblou dois zagueiros e acertou uma patada no ângulo do goleiro esmeralda. Empate!

Primeiro lance e ele havia colocado novamente o Operário na disputa. Os jogadores se abraçavam, homens adultos viravam crianças nas arquibancadas, as mocinhas quase desmaiavam de emoção.

O Esmeralda não pareceu abalado com o gol sofrido, deu a saída e continuou tocando a bola como antes. Para desespero dos azuis, um zagueiro do Esmeralda colou em Tantinho, provocando-o, xingando, dando empurrões e toques em suas canelas. Será que ele ia novamente perder a cabeça e deixar o time na mão em hora tão importante? Será que ele suportaria os menos de cinco minutos até o fim do jogo, tentando aproveitar uma chance ou até mesmo os pênaltis?

Ataque do Esmeralda, o juiz já olhando o relógio, pressão total do time verde. Os azuis todos, Tantinho inclusive, defendendo. Num bate-rebate, a bola sobra nos pés do astro maldito do Operário, que avança contra a meta adversária. Deixando marcadores para trás, fugindo de tesouras voadoras, carrinhos e empurrões, ele chega até a intermediária inimiga e fulmina o goleiro adversário, que mal toca na bola. Operário dois a um e o juiz encerra o jogo. Caído em campo, Tantinho é coberto pelos colegas de time, que o soterram sob seus corpos numa homenagem pelo gol heróico e por ter suportado as provocações sem perder a cabeça.

Erguem-no nos braços, desfilam com ele pelo campo, passeiam em frente á torcida, que em êxtase, berra o nome de seu salvador.

Quando baixam o jogador, para que ele possa ajudar a levantar a taça, ele não fica em pé. Correm atrás de médicos! Gritam por ajuda! Alguém traga água, abre espaço para ele respirar! Cadê o doutor? Acho que ele morreu, gente!

O pânico se espalha pelo gramado e chega as arquibancadas. A platéia emudece. Azuis e verdes se abraçam, pelo pavor de ver um homem morto em campo. O médico enfim chega, examina o rapaz e balança a cabeça. Um ataque do coração matou o herói do título.

O Operário e sua torcida voltam para casa. O que seria um retorno triunfal transforma-se num cortejo fúnebre. À frente, um carro com a taça e o corpo de Tantinho. Entram em silêncio na cidade. A notícia já chegou e se espalhou. A população está na porta das casas, todos de azul e branco. Batem palmas ao passar o cortejo, palmas e lágrimas acompanham o retorno do herói, sua trupe e seu troféu.

Preparam um enterro com honras para o jogador. A cidade inteira comparece e canta o hino do Operário Esporte Clube à beira do túmulo. Tantinho é enterrado com a camisa do clube e a faixa de campeão. Na sede do clube, um único troféu, do X Torneio Intermunicipal. À frente dele, uma foto preto e branco, Tantinho.

Um comentário:

AngelMira disse...

Sensacional! Parabéns, Lionel! Quanta criatividade...