24.9.09

Sábado à noite

E, naqueles tempos de dureza, só nos restava o romantismo de bermudas e chinelos. Regado a vinho barato e músicas no violão, ali mesmo na pracinha em frente ao prédio. Juntávamos os trocados, íamos ao mercado e trazíamos uma garrafa ou duas do que estivesse na promoção. Normalmente, era um vinho que deixava as línguas roxas e nos dava uma ressaca desmoralizante.

Mas eram sábados em que precisávamos sair de casa, nem que fosse só até à pracinha, onde sempre passavam algumas meninas. A esperança de que alguma delas viesse até nossa rodinha e pedisse uma música é que nos movia. Éramos quase todos estudantes, vindos cada um de um canto, morando na mesma pensão. Um sobrado caquético e embolorado. Mas a comida era boa e o preço, acessível, e íamos ficando ali.

Eram uns quinze sujeitos morando na pensão, mas nosso grupo tinha apenas quatro integrantes. Eu, que estudava e trabalhava com contabilidade, o Zé Eduardo, que fazia enfermagem e dava plantão às sextas no posto de saúde do bairro, Bigode, balconista de uma loja de tecidos e que terminava o segundo grau à noite e o César, que fazia supletivo e mandava quase todo o dinheiro que ganhava na loja de tintas para a mãe, no interior de Minas.

A gente mal se falava de segunda a sexta, mas como dividíamos o mesmo quarto, acabamos amigos e sempre andávamos juntos nos fins de semana. O César tinha um violão, e nos sábados à noite íamos para a pracinha e ficávamos bebendo, tocando violão e esperando que alguma menina viesse pedir alguma música pra nós.

Nem lembro mais por quanto tempo cumprimos esse ritual dos sábados. Aí um dia, uma menina veio falar conosco. Ela pediu uma música que o Bigode sabia, acho que era uma do Zé Ramalho. Ele tocou e ela ficou ali, olhando, debruçada num dos bancos da praça. Ele tocou mais uma e mais outra, e ela ali, até aceitou o vinho que oferecemos. Ela se levantou, jogou um beijo pro Bigode e outro pra nós todos e saiu, rebolando.

No sábado seguinte, ela veio com mais uma amiga e elas ficaram ali quase a noite toda. Cantaram junto e pediram músicas. Beberam e riram com a gente. Eu acabei voltando mais cedo para a pensão e deixei os três com as meninas na praça. Tinha de visitar uma tia em Nova Iguaçu e precisava acordar cedo. Acordei cinco da manhã e nenhum de meus camaradas estava no quarto. Fiquei feliz por achar que finalmente as coisas estavam começando a dar certo para eles. Me vesti e fui para o ponto de ônibus. A praça estava vazia, meus amigos aparentemente estavam se dando bem. Entrei no ônibus e dormi logo, para aliviar os efeitos do vinho da véspera.

Cheguei quase dez da noite, correndo para não perder a Garota do Fantástico e os gols do domingo. Mas nem vi nada. Fiquei sabendo que o Bigode tinha perdido a cabeça e brigado com a menina quando ela não quis nada com ele. O Zé e o César tiveram de segurá-lo, mas mesmo assim ele deu um soco na pobre e quebrou dois dentes dela. O irmão da menina apareceu e deu três facadas no César, que não tinha nada a ver com nada, ainda bem que o Zé socorreu ele a tempo. O Bigode quebrou o violão na cabeça do irmão da moça pra poder fugir e ninguém soube dele.

Não soube mais ou menos. Uma semana depois recebi uma carta dele, pedindo pra catar as coisas dele e encaixotar. Ele tinha pouca coisa, coube tudo numa bolsa e numa caixa de papelão. encontrei com ele longe da pensão. Ele tinha saído do emprego também, com medo do cara ou a polícia irem procurar por ele lá. Já tinha conseguido serviço como ajudante de motorista de caminhão e tava indo para Aracaju no dia seguinte. Só queria mesmo pegar as tralhas e mandar um trocado pra dona da pensão, pra fechar o mês e não sair devendo.

Ele perguntou dos outros dois. Quando eu disse que todo mundo já estava bem, me deu um abraço e saiu, sem falar mais nada. Nunca mais soube dele. O César nem voltou para a pensão do hospital, voltou direto para Minas. O Zé Eduardo também não ficou muito mais tempo ali. Conseguiu vaga numa pensão mais perto da faculdade e passou a trabalhar num hospital da prefeitura. Eu ainda fiquei até o final do ano, quando terminei a faculdade e consegui uma promoção no escritório. Aluguei uma quitinete no centro e também não voltei mais na pensão.

Essa semana eu estava no pronto socorro do hospital, pegando uns exames da minha sogra e vi o Zé passando, dar plantão ali. Ele não me reconheceu, estou mudado, bem mudado, mas ele continua o mesmo. Tive vontade de ir falar com ele, mas desisti, se dói em mim que não vi nada, imagina pra ele, que teve de acudir o César? Deixei ele passar, peguei os exames, entrei no carro e fui embora. Tem hora que é bom esquecer das coisas.

Nenhum comentário: