12.2.12

A decisão

- Não... não faço a mínima questão de você ficar mais um pouco ou não. O que você decidir está bom pra mim.

O tom de voz dele não tinha nenhum tom de sarcasmo ou desafio. Não fosse pelo conteúdo, a entonação pareceria um comentário sobre o tempo. Estavam os dois deitados. Ele nu, e ela só de sutiã, os cabelos desarrumados e o batom borrado. Ela tinha os olhos escuros e enormes, com cílios que pareciam postiços. Ela puxou o lençol até o umbigo, como se sentisse vergonha de continuar exposta perto dele. Eram amantes há muito tempo e ela nunca o entendia muito bem. Gostava do jeito dele, de como ele a fazia rir, do jeito com que ele conseguia proporcionar-lhe orgasmos intensos e avassaladores. Ela adorava o apartamento bagunçado, cheio de livros espalhados e pôsters de cinema nas paredes encardidas.

Amigos em comum haviam feito os dois se esbarrarem e a química entre os dois foi tão instantânea e intensa que no meio da festa estavam se atracando na escada de incêndio. Ela inventava mil desculpas em casa para o marido e sumia com ele na noite do rio. E nas tardes e manhãs também. Horário de almoço no motel. Como ele conseguia aquilo com ela? Como ele a dominava completamente? Porque ele era tão legal, tão carinhoso? Olhou para o lado. Os olhares se tocaram. Só podia ser aquilo. Os olhos dele. Escuros como os dela, profundos. Toda a vez que ela se pegava olhando para aqueles olhos, tinha a sensação de que ele conseguia enxergar através dela. Dentro dela. Ele tinha olhos de raios-X. De alguma forma, ela sentia que ele conseguiria vê-la nua mesmo que se estivesse de burca. Ela sabia que ele podia ver sua alma, seus conflitos internos, suas vontades. Ele parecia adivinhar o que ela pensava. Se não era assim, como ele conseguia antecipar suas vontades na cama? Como teria aparecido com um tiramisú sem nunca ela ter falado que era seu doce predileto?

E os presentinhos? Coisas tão bestas e impactantes. O broche com um yorkshire pintado. O ímã de geladeira com Marylin nua no lençol vermelho. "Aquele" livro de Clarice. Os beijos atrás da orelha. Tudo tão lindo, tão intenso. Como podia ser aquilo? Como é que ela não se sentia culpada em trair o marido? Em deixá-lo em casa e se entregar àquele homem? Ela sabia que ele era sozinho, solteiro. Porque ele nunca lhe pedia que saísse de casa e que se tornassem um, já que eram tão conectados? Ela tinha a certeza absoluta de que eram almas gêmeas! Ansiava por um tropeço do marido para poder abandoná-lo. Não tinha coragem de pedir a um que a assumisse, nem ao outro que sumisse.

Aí se sentia má. Perversa. Como poderia abandonar o homem que a quisera pra si quando ela achava que nunca teria nada de seu? Como deixar aquele que era seu esteio, seu sustentáculo. O outro era ótimo, mas era o marido que estivera ao lado dela em todas as suas provações. Mordeu o lábio até sentir uma pontada de dor percorrendo a espinha. Ela tinha de acabar com aquilo. Aproveitar a deixa daquela frase, como faziam os atores no teatro. Usar como escada o jeito distante dele e pôr fim àquilo tudo. Voltar a ser a mulher de três meses antes. A pacata e ordeira mulher de antes de saber dele, de provar aquele gosto, de sentir aquele cheiro, de ver aqueles olhos que a desnudavam.

Respirou fundo, tomando toda a coragem que tinha. Convicta do que deveria fazer. Levantou-se, vestiu as roupas sem pronunciar palavra. Sim, aquilo é que era o certo a ser feito. Ajeitou os cabelos pelo espelho do armário e calçou as sapatilhas vermelhas. Pegou a bolsa sobre a mesinha e deu a volta na cama, até onde ele estava deitado, imóvel e silencioso desde aquela frase. Só os olhos dele pareciam querer falar algo que ela sabia não querer ouvir. Debruçou-se sobre ele e, com um beijo na testa dele, fez a única coisa que lhe pareceu ser a correta.

- Me vou, querido... é o melhor para nós dois. Se eu conseguir a folga na quarta, eu te ligo para irmos ao cinema juntos. Te quero bem.

3 comentários:

marcelo alves disse...

Um retorno em grande estilo

Lion disse...

Muito obrigado, camarada!

Duda Duque disse...

Adoro esse....mt mesmo. ;)