8.2.11

O livro

Ela escrevia um diário. Ou melhor, não era bem um diário. Era um velho livro de registro, desses usados em hotéis para controlar o fluxo de hóspedes. Ela o achou na casa da avó materna e o pegou para si. Era imenso, desajeitado. A capa de couro, grossa e dura, já começando a ressecar.

Ela o levou para casa, passou hidratante no couro. Havia lido em uma revista que isso era bom para jaquetas e afins. Gostou do resultado. Colocou seu nome na primeira página e sempre que dava na telha, escrevia algumas linhas ali. E escrevia, desenhava. Desencavou no armário uma caixa de lápis de cor da época do colégio e recordou os elogios nas aulas de arte, desenhando borboletas e bonequinhas nas margens amareladas do papel.

O velho livro se transformou em seu divã. Largou a terapia e quando o namorado terminou com ela, mal chorou. Só encheu duas daquelas páginas enormes com as coisas que a irritavam nele. Catarse. Deixava ali gravadas as cartas que escrevia e as que nunca escreveria. Os pensamentos mais ocultos e íntimos. Os desejos mais inocentes e até aqueles que fariam corar os mais despudorados. E melhor, o livro parecia nunca acabar.

E ela se descobriu poeta, historiadora, escritora, pirata. Uma menina sapeca nasceu nas páginas do velho livro. Ali ela era a única dona de sua história. Quando algo não funcionava em seu dia-dia, ela o consertava no papel, guardava o volume numa caixa sob a cama e dormia sorridente.

Um dia conheceu um belo rapaz, apaixonou-se e aceitou viajar com ele. Casaram longe da família dela e ficaram meses viajando, rodando o mundo, completamente aventureiros e desimpedidos. Longe do livro, não pode registrar o exame positivo de gravidez ou a primeira foto do bebê.

Só não fugira de casa porque ligava toda quarta-feira pra mandar notícias. De quando em quando, ao assinar alguma coisa ou escrever bilhetes, lembrava-se do livro e vinha uma saudade boa, dessas que faz suspirar.

Um dia voltou para casa, de mala, cuia, marido e bebê. Depois da festa, com todos dormindo, voltou a seu antigo quarto. A caixa continuava sob a cama, o livro dentro dela, intocado em todos aqueles anos.

Folheou-o como quem abraça um velho amigo, cheirando as páginas, beijando o papel e a capa novamente ressequida, umedecendo-a com as lágrimas de saudade. leu alguns trechos aleatórios e viu como tinha crescido após aquelas letras. Guardou-o com carinho e foi dormir, leve como antes.

No dia seguinte havia um estranho quadro na sala. Um velho livro de registro em uma belíssima moldura dourada. Sobre o aparador. Sobre toda uma vida.

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